Retrospectiva: Nada é mais gratificante do que alfabetizar (2)


     

Letra A • Quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015, 16:54:00

Alguns professores acreditam que a solução para problemas na alfabetização será a retomada do método fônico e de outros métodos utilizados no passado. O que você acha disso?

Essa idéia de retomar os métodos do passado faz parte daquela tendência tão comum, e tão enganosa, de considerar que antigamente tudo era melhor... Este recurso ao "antigamente" é sempre um caminho falso. No caso da alfabetização, é um caminho falso porque antigamente o fracasso também era grande, como continua a ser hoje. A diferença é que, antes, ele era concentrado na série considerada "de alfabetização": o aluno não ia para frente, não era aprovado enquanto não se alfabetizasse, e os índices de reprovação na primeira série eram altos. Agora, o fracasso se deslocou. Passou a se evidenciar no meio e muitas vezes até mesmo no fim do ensino fundamental: alunos que chegam às séries ou ciclos finais dessa etapa semi-alfabetizados ou até não alfabetizados. Assim, o argumento de que o método fônico, usado sobretudo nos anos 70, dava certo e, portanto, deve ser retomado, não se sustenta. Isso porque havia reprovação e não-aprendizagem com o método fônico, como havia também com outros métodos. Não tem sentido uma volta ao passado esquecendo ou abandonando as contribuições fundamentais do Construtivismo e das ciências lingüísticas para a compreensão do processo de aprendizagem da língua escrita. Um exemplo: antes, o menino escrevia silabicamente e as professoras diziam: "ele está engolindo letra, é disléxico, é preciso encaminhar para um psicólogo;" hoje, a teoria construtivista e os princípios lingüísticos evidenciam que escrever silabicamente é uma etapa normal do processo de descoberta do sistema de escrita. Fica claro como o avanço do conhecimento sobre a aprendizagem da língua escrita torna sem sentido propostas de volta ao que se fazia antigamente.

Qual o prejuízo para a criança que aprende só pelo método fônico?

O mais adequado, pedagogicamente e até psicologicamente, é que a criança aprenda simultaneamente todas as competências e habilidades envolvidas na aquisição da língua escrita: aprenda a decodificar e codificar, isto é, aprenda as relações entre os "sons" e as letras ou grafemas, ao mesmo tempo em que aprenda a compreender textos, a construir sentido para os textos, e ainda aprenda as funções da escrita, os diferentes gêneros de textos... Se o professor ensina seqüencialmente, sistematicamente, as relações fonema/grafema, como faz o método fônico, a criança acaba, sim, aprendendo a escrever e a ler, como codificação e decodificação, mas, e a compreensão? a construção de sentido? o entendimento das funções da escrita, o envolvimento em práticas sociais de leitura e escrita? Isso fica adiado "para depois"; a criança aprende só a tecnologia da escrita, desligada de seus usos sociais, o que tira todo o sentido da tecnologia. Quando se reconhecem as várias facetas da escrita, não se pode aceitar que a criança aprenda com aquele tipo de texto "O bebê baba", "Eva viu a uva"... textos que não circulam na sociedade, não fazem o menor sentido, não são um conto, uma poesia, uma parlenda, são artificialmente construídos com o único objetivo de ensinar a codificar e decodificar. Que conceito a criança constrói dos usos da língua escrita com textos como esses? A criança deve aprender a ler e a escrever interagindo com textos reais, com os diversos gêneros e portadores de texto que circulam na sociedade. Assim ela vai aprender não só as relações fonema/grafema, mas, simultaneamente, o sentido e função que tem a escrita.

Qual é então o método de alfabetização adequado no momento atual?

Cada uma das facetas da aprendizagem da língua escrita supõe um processo cognitivo específico. Não se aprende uma convenção (a relação fonema/grafema) da mesma forma que se aprende a construir sentido de um texto, a interpretar, a compreender. Aprender os diferentes usos e funções da escrita e os diferentes gêneros de texto também demanda processos cognitivos diferenciados.

A conseqüência é que, no estado atual dos conhecimentos sobre a língua escrita e sua aprendizagem, não se pode falar de um método de alfabetização, mas de métodos de alfabetização, no plural. Assim: ler histórias ou poemas ou textos informativos para as crianças, levá-las a interpretar esses diferentes textos supõe determinados procedimentos didáticos, enquanto que tomar palavras-chave de um texto lido e trabalhá-las para, com base nelas, desenvolver a aprendizagem das relações fonema/grafema supõe outros procedimentos. São diferentes métodos, diferentes procedimentos, porque são diferentes objetos de conhecimento e, portanto, diferentes processos de aprendizagem. Por isso, hoje é preciso ter métodos de alfabetização, não um único método de alfabetização.

O que é "consciência fonológica" e como o professor lida com essa abordagem?

Atualmente voltou-se a falar em consciência fonológica, um conceito que tinha sido, de certa forma, esquecido e até abandonado. Mas é preciso entender mais claramente esse conceito. Acho que é importante distinguir consciência fonológica de consciência fonêmica. A percepção e compreensão das relações fonema/grafema constituem o que mais propriamente se chama consciência fonêmica, que é um dos aspectos da consciência fonológica. A consciência fonológica é a percepção, pela criança, de que a língua é som. Essa consciência, que a criança tem quando começa a aprender a falar, se perde com o correr do tempo. Quando falamos, emitimos sons, sílabas, fonemas, palavras: juntamos fonemas em sílabas, sílabas em palavras e palavras em sentenças, mas não prestamos atenção nesses sons, prestamos atenção no conteúdo do que estamos falando, nas idéias. O mesmo acontece quando ouvimos: prestamos atenção no sentido, não nos sons. A criança, vencida a etapa inicial de aprender a emitir os sons da fala, também passa a prestar atenção no sentido, não nos sons. Em atividades de desenvolvimento de consciência fonológica, isso fica claro, pois é freqüente que as crianças, ao lhes ser solicitado que digam palavras que comecem com, por exemplo, ma-, e se esclarece: "palavras que comecem com ma-, como em maçã", elas respondem com nomes de frutas – abacaxi, banana.... e não com palavras como macaco, mato, machado... Por mais que se insista com a criança, chamando a atenção para a sílaba inicial da palavra ma-, como em maçã, elas respondem: "banana!", "abacaxi!" Porque não estão atentas ao aspecto sonoro, mas ao significado da palavra. É difícil levar a criança a ouvir a palavra e perceber que ela é som. Mas fazer com que a criança volte sua atenção para a palavra como som é importante porque, quando ela for escrever maçã, não vai desenhar uma maçã, vai escrever letras que representem os sons da palavra. Consciência fonológica é isto: ter consciência de que a língua é som. Essa consciência da língua como uma cadeia sonora avança, em um momento seguinte, para a percepção da segmentação dessa cadeia em palavras, e depois para a percepção da segmentação das palavras em sílabas. Nesse momento é que a criança começa a escrever silabicamente – uma letra para cada sílaba da palavra. A etapa seguinte é a mais difícil: perceber os fonemas que compõem a sílaba – é o que se chama consciência fonêmica – e registrar os fonemas – um grafema para cada fonema, porque assim é o nosso sistema alfabético. É a etapa mais difícil porque, excetuadas as vogais, os demais fonemas não têm existência material: é impossível pronunciar o /f/, o /t/, qualquer consoante, sem o apoio de uma vogal. Por isso é que a consciência fonêmica se desenvolve em interação com a aprendizagem da escrita, é um processo de mão dupla: a criança precisa ter consciência fonêmica para se apropriar do sistema alfabético da escrita, mas é também no processo de se apropriar dele que vai conquistando a consciência fonêmica.

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