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Interpretação de leitura

Autor: Sírio Possenti,

Instituição: Instituto de Estudos da Linguagem-IEL/Unicamp,

As teorias de discurso deixaram mais claro que não lemos simplesmente textos, mas gêneros situados em campos discursivos. Cada campo e, eventualmente, cada um de seus gêneros, postula leituras diferentes. Por exemplo, textos científicos são mais unívocos e explícitos e exigem uma leitura precisa, que é a mesma para os numerosos leitores, enquanto textos literários e religiosos são objeto de muitas interpretações, que são, além disso, concorrentes entre si. Não é a mesma coisa ler artigos de opinião ou editoriais e ler reportagens. Uma propaganda de produto farmacêutico é recebida pelo leitor/ouvinte (ou deveria sê-lo) diferentemente de uma bula ou de uma recomendação médica.

Assim, ler exige pelo menos dois movimentos. Um deles é mais ‘literal’: seu objetivo é descobrir conteúdos, enredos, informações, ou seja, desvendar do que trata o texto (noticia um terremoto, informa local e data de um evento, narra fatos históricos ocorridos em um lugar e em uma época, expõe argumentos a favor ou contra determinada tese, é um romance em que a heroína se suicida ou se casa no final).

Outro movimento consiste em uma interpretação. É esta que permite que leitor chegue a resultados como ‘é um romance machista / uma notícia sensacionalista / um editorial conservador (ou revolucionário) / uma propaganda dirigida aos jovens que põe em jogo certos valores / um artigo científico otimista (ou pessimista) em relação ao futuro da Terra, devido ao aquecimento global’.

Ler é também descobrir relações entre textos, dar-se conta de que um romance, poema ou artigo se relaciona com outro (ou outros), que a relação entre eles é polêmica, amistosa, etc.

No caso de outras linguagens, “ler” pode exigir a descoberta de relações com outras obras (de pinturas com outras pinturas; de filmes com outros filmes, livros ou contos; de propagandas com cenas de filmes; de músicas e letras com outras obras do mesmo campo, e tantas outras).

O principal efeito pedagógico das atividades de leitura deveria ser a explicitação dessa dupla abordagem, pelo menos. Com isso, evitar-se-ia, ao mesmo tempo, que todos os textos sejam tratados da mesma forma - por exemplo, privilegiar apenas o conteúdo expresso - e, também, que textos sejam lidos de maneira totalmente subjetiva, sem “passar pelo texto” e pelo interdiscurso, para argumentar em favor de determinada interpretação.

Outro efeito importante é que fica claro que leitura é uma prática a ser desenvolvida em todas as disciplinas, não apenas nas aulas de Português, - porque, por exemplo, o profissional mais gabaritado para ensinar a ler (e a escrever) adequadamente textos que tratem de Biologia (ou de História e outras disciplinas) é o professor de Biologia (ou de História, etc.). 


Verbetes associados: Compreensão leitora, Gêneros do discurso, Gêneros e tipos textuais


Referências bibliográficas:
EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
MARI, H. et al. (orgs.). Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005.
PAULINO, G. et al. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001.
POSSENTI, S. A leitura errada existe. In: BARZOTTO, V. (org.). Estado da leitura. Campinas: ALB-Mercado de Letras. p. 169-178.

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