< ir para página inicial

Intertextualidade

Autor: Maria Zilda Ferreira Cury,

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Letras-FALE,

A formação de uma palavra sempre ilumina sua significação. Intertextualidade: a relação “entre textos”, o diálogo entre textos. Toma-se, aqui, texto num sentido amplo do termo: um poema, um romance, uma notícia de jornal, os quadrinhos são textos. Mas também o são uma propaganda, um filme, um quadro, uma música. Da cidade, por exemplo, Marco Polo dizia que se poderiam ler as páginas, como se fossem as de um livro, evidenciando a multiplicidade de significações e de olhares que atravessam o espaço urbano. Filmes que retomam filmes e romances, quadros que dialogam com outros, propagandas que se utilizam do discurso artístico, poemas escritos com versos alheios, romances que se apropriam de formas musicais, visões de mundo que se retomam e se desconstroem: a tudo isso se chama intertextualidade. Um texto é, pois, um recorte no largo campo da produção dos bens da cultura, produções continuamente postas em relação pelo homem no seu processo de produzir significação. Na literatura em geral e na literatura infantil e juvenil, por exemplo, os textos dialogam entre si, ou na forma de citação direta de um filme, de trecho de uma música, de um personagem, ou de forma indireta, deixando ao leitor pistas para relembrar de outros textos que conhece. 

            A produção de um texto sempre implica a retomada de muitos outros e depende do olhar do leitor para que se criem e recriem significações, já que este último é corresponsável por sua construção. A intertextualidade se dá, pois, tanto na produção como na recepção da grande rede cultural, de que todos participam. Escrita e leitura são faces da mesma moeda. O leitor também participa dessa ampla rede dialógica ao trazer para o texto que está lendo sua bagagem de leituras de outros textos, de variadas linguagens e diferentes gêneros. Roland Barthes nos diz que sempre lemos levantando a cabeça, ou seja, fazendo relações e colocando em diálogo o texto que temos diante de nós e os outros textos que, de alguma forma, já incorporamos. Na sua atividade pedagógica, em todos os níveis da formação escolar, o professor tem na intertextualidade um amplo campo para a valorização do processo de formação de leitores, de aproveitamento do capital cultural de seus alunos, por meio da explicitação da leitura como atividade criativa.

No processo de alfabetização, e mais do que neste último, no processo de letramento, tendo em vista uma aprendizagem significativa, a intertextualidade é ferramenta importante, porque revela as vozes e falas que habitam todo texto. A atividade pedagógica, norteada por essa finalidade dialógica, valoriza o conhecimento prévio do aluno que está sendo alfabetizado/letrado, facultando a abertura não só para a apropriação de novos conhecimentos, mas também para a ativação de outros que, muitas vezes, o aluno ignora já possuir. Nesse sentido, o professor precisa acionar as experiências dos alunos, mostrando inicialmente as relações entre um texto e um filme infantil nele evocado ou citado, entre uma poesia e um trecho de cantiga por ele conhecido, por exemplo. Os personagens das histórias em quadrinhos podem ser aproximados daqueles dos poemas e contos, como uma forma de aproveitar o conhecimento já incorporado pela criança em outros suportes textuais diferentes do livro didático. Assim, por exemplo, pode-se criar espaço para o diálogo entre a zangada Mônica e a gulosa Magali dos quadrinhos de Maurício de Souza com a menina manhosa e inapetente do poema “Uma palmada bem dada”, de Cecília Meireles. E mesmo aproximar o personagem Cebolinha, sabidamente caracterizado como um “tloca letla”, de Orfeu Orofilo Ferreira, “O menino dos FF e RR”, outro poema de Cecília Meireles.

É importante registrar que, num sentido mais estrito, a palavra texto remete a uma linguagem verbal. Dentro dessa ordem, a literatura vale-se amplamente do recurso intertextual, consciente ou inconscientemente. Em razão disso, a intertextualidade é um importante fator da leitura literária. Como nos diz Julia Kristeva, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” O texto literário se apresentaria como um feixe de relações intertextuais, de diferenças e tensões em que “se faz acontecer certa realidade”. Veja-se, por exemplo, a origem da palavra poeta: do grego poiésis, criação, fabricação. Poeta é, pois, aquele que cria, aquele que faz, que faz linguagem. Mas também é um ladrão, um “ladrão de palavras”, de tradições de que ele se apropria no seu trabalho de criação. Veja-se, por exemplo, A bela borboleta, livro de Ziraldo, em que são convocados os mais conhecidos personagens dos tradicionais contos de fadas – o Patinho Feio, a Bela Adormecida, Branca de Neve, o Gato de Botas – para libertar uma borboleta presa nas páginas do livro. Rico diálogo se estabelece não só entre personagens da tradição e a bela borboleta, como também entre todos eles e as ilustrações, que, com fina ironia, invertem expectativas consagradas de recepção textual. Além disso, tematiza-se no livro a própria leitura como ferramenta libertadora.

Na verdade, a intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções literárias que se valem do recurso da apropriação, colocando em xeque a própria noção de autoria. Referências diretas a outros textos, alusões a um autor e a seu estilo, epígrafes, paráfrases, paródias, como a utilização, por Chico Buarque, da base de um ‘conto maravilhoso’ como Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault, para criar uma nova obra como Chapeuzinho Amarelo, e até mesmo traduções são algumas das formas de intertextualidade de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição, com a herança cultural e com sua contemporaneidade.


Verbetes associados: Inferência na leitura, Interdiscursividade, Leitura , Mediação literária na Educação Infantil, Mediadores de leitura , Texto,


Referências bibliográficas:
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, SP: Hucitec, 1981 (1929).
CURY, M. Z. F. Intertextualidade: uma prática contraditória. Ensaios de Semiótica, nº 8, ano IV. Belo Horizonte: UFMG, 1982.
KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PAULINO, M. G. R.; WALTY, I. L. C.; CURY, M. Z. F. Intertextualidades: teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora Lê. 1997.
SCHNEIDER, M. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista de Educação. ANPED, n. 25, 2004.

< voltar