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Práticas e eventos de letramento

Autor: Brian V. Street, Maria Lúcia Castanheira,

Instituição: King’s College London - Linguagem e Educação, Universidade Federal de Minas Gerias-UFMG/ Faculdade de Educação-FAE / Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita-CEALE,

Os conceitos de eventos de letramento e de práticas de letramento estão estreitamente relacionados e, por isso, serão abordados conjuntamente. A  expressão eventos de letramento refere-se aos elementos mais observáveis das atividades que envolvem a leitura e a escrita, enquanto o conceito de práticas de letramento distancia-se do contexto imediato em que os eventos ocorrem, para situá-los e interpretá-los em contextos institucionais e culturais a partir dos quais os participantes atribuem significados à escrita e à leitura, e aos eventos de que participam. O uso do plural em ambos os conceitos (eventos e práticas) indica que a atribuição de valor social aos usos da escrita varia de um grupo social para outro, é objeto de disputa e depende do jogo de forças econômicas, religiosas e políticas num determinado contexto, ou entre um contexto local e contextos mais distantes.

A proposição desses dois conceitos assenta-se na compreensão da natureza social do letramento, que teve origem e desenvolvimento em um conjunto de pesquisas denominado Novos Estudos do Letramento (New Literacy Studies). Práticas e Eventos de letramento são modelos analíticos utilizados por pesquisadores que buscam compreender os usos e os significados da escrita e da leitura para diferentes grupos sociais e as consequências educacionais, políticas e sociais de tais usos e significados para os indivíduos e para os grupos a que pertencem.

Shirley Brice Heath caracterizou como evento de letramento qualquer ocasião em que algo escrito é constitutivo da interação e dos processos interpretativos dos participantes, ou seja, é o que podemos observar que as pessoas estão fazendo quando estão usando a escrita e a leitura. Essa noção oferece ao pesquisador (ou ao professor que analisa o cotidiano de sua sala de aula) um modelo analítico para descrever e caracterizar quando, onde e como as pessoas leem ou escrevem, conversam sobre um texto escrito ou interagem por meio da escrita.

Os eventos de letramento ocorrem em diferentes espaços sociais, assumem diferentes formas e têm funções variadas. No cotidiano de uma sala de aula, por exemplo, podem ser identificados em situações em que professor e alunos conversam sobre um livro lido pela turma ou sobre uma notícia de jornal comentada por um aluno. O mesmo ocorre nas situações em que o professor registra no quadro o nome dos aniversariantes, a agenda de trabalho do dia ou os nomes dos alunos ‘bagunceiros’. As pessoas também se envolvem em vários eventos de letramento fora da escola quando, por exemplo, participam de um ritual religioso, leem um livro para os filhos, anotam compras em uma caderneta, leem e escrevem cartas e e-mails ou leem pequenos anúncios em busca de emprego.

Os estudos desenvolvidos por Heath em comunidades populares dos Estados Unidos nos ajudaram a compreender o que acontece nessas comunidades, na medida em que permitem relacionar os eventos observados, dentro e fora da escola, a padrões culturais mais amplos, como as crenças religiosas ou as formas como os pais lidam com as palavras, escritas ou faladas.

A partir dessas contribuições, Street criou a expressão práticas de letramento – conceito que possibilita ampliar e detalhar a análise e a interpretação tanto das práticas sociais que envolvem a linguagem escrita quanto das concepções de escrita e leitura predominantes num grupo social. Com isso, torna-se possível um aprofundamento no exame dos significados associados aos eventos de letramento.

Em pesquisa desenvolvida no Irã, no início da década de 1980, Street observou moradores de uma vila envolvidos com materiais escritos – contas ou notas relativas à venda de maçãs; textos do Alcorão, livro sagrado do Islamismo, na escola religiosa; e novas práticas de letramento associadas ao desenvolvimento do sistema de ensino nacional. Em cada um dos eventos observados, os significados do letramento estavam imersos em práticas culturais arraigadas que ajudavam o pesquisador a compreender como esses eventos estavam relacionados uns aos outros e como eram reconhecidos e legitimados (ou não) por diferentes grupos sociais. Para esse entendimento, era necessário conversar com as pessoas sobre o que estavam fazendo. Por exemplo, do ponto de vista das autoridades e de organizações internacionais, o letramento escolar seria a base das atividades comerciais e promoveria o desenvolvimento comercial. No entanto, uma análise mais profunda dos eventos observados e de suas relações com práticas sociais mais amplas evidenciou que era o letramento religioso, o conhecimento do Alcorão, que dava autoridade a uma pessoa para conduzir e registrar as atividades comerciais.

Ao examinar os significados da escrita para moradores de um bairro da periferia de Belo Horizonte, Castanheira explorou os conceitos de práticas e eventos de letramento. A análise comparativa de dados de dois estudos de caso desenvolvidos por ela, um realizado no final da década de 1980 e outro vinte anos depois, evidenciou como as práticas locais de letramento estavam relacionadas a mudanças econômicas, religiosas e educacionais ocorridas no contexto brasileiro nas últimas décadas. Mudanças ocorridas no campo da alfabetização escolar foram evidenciadas pela análise comparativa de um evento de letramento comumente desenvolvido por crianças fora da escola: a brincadeira de ‘aulinha’. Os eventos ‘aulinha’ observados nesses dois períodos possuem características comuns: crianças usando lápis e papel, escrevendo o que havia sido determinado por outra criança que assumira o papel de professora. Da mesma maneira que no estudo desenvolvido por Street, para a compreensão dos significados da escrita para os participantes desses eventos – crianças que pertencem a diferentes gerações –, foi necessário conversar com elas, ouvir o que falavam umas com as outras e analisar o que escreviam durante esses eventos. Assim, foi possível perceber diferenças significativas nas situações observadas e relacioná-las a mudanças ocorridas nas propostas de alfabetização desenvolvidas pela escola nas últimas décadas. Em 1988, por exemplo, as brincadeiras de ‘aulinha’ envolviam a cópia do primeiro nome e do alfabeto, além de exercícios para o treino da letra cursiva, ou seja, atividades que privilegiavam a memorização e o treino motor por meio da cópia. Em 2009, brincar de ‘aulinha’ passou a envolver algo bastante diferente, como o levantamento de hipóteses relativas à escrita de palavras. Nesse caso, após a observação de um conjunto de desenhos de objetos variados, a ‘professora’ orientava seus ‘alunos’ a escreverem o nome desses objetos ‘como soubessem’. Dessa forma, uma análise mais profunda dos eventos de letramento ‘aulinha’ evidenciou que eles estavam vinculados a concepções e princípios distintos do como se aprende e se ensina a ler e a escrever, ou seja, das representações das práticas de alfabetização e letramento presentes nas escolas e que se estendem para além dos muros da escola.


Verbetes associados: Cultura escrita, Evento interacional, Letramento, Letramento escolar, Práticas de leitura , Usos sociais da língua escrita


Referências bibliográficas:
HEATH, S. B.; STREET, B. V. On ethnography: approaches to languages and literacy research. National Conference on Research in language and literacy. New York: Teachers College Columbia, 2008
STREET, B. V. Os novos estudos do letramento: histórico e perspectivas. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (orgs.) Cultura Escrita e Letramento, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 33-53.
STREET, B. V. Políticas e práticas de letramento na Inglaterra: uma perspectiva de letramentos sociais como base para uma comparação com o Brasil. Cadernos CEDES, vol.33, n.89, Campinas, jan./abr. 2013.
STREET, B. V. Letramentos Sociais. São Paulo: Parábola, 2014.

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