Discurso de Magda Soares

Confira as palavras ditas pela fundadora do Ceale ao receber o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e a Tecnologia 2015


     

Institucional • Sexta-feira, 08 de Maio de 2015, 11:54:00

Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia – 2015

Área de Ciências Humanas e Sociais, Letras e Artes

Palavras da laureada Magda Soares

 

Começo por interpretar minha inclusão no conjunto de laureados pelo Prêmio.

Sou a 44ª laureada – o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia foi concedido pela primeira vez em 1982, há 33 anos.

Entre os 43 laureados que me antecederam, das três áreas em que o Prêmio é concedido alternadamente – Ciências Exatas, da Terra e Engenharias; Ciências da Vida; Ciências Humanas e Sociais, Letras e Artes – sou a 9ª desta última área.

Sou a 3ª mulher (peço licença para dizer que sou apenas a 3ª mulher...), entre os 44 laureados – por isso faço questão de nomear as duas mulheres que me antecederam, e me orgulho muito de estar agora ao lado delas:

  • Maria Isaura Queiroz, em 1997 – pesquisadora de grande importância na Sociologia em nosso país.
  • Maria da Conceição Tavares, em 2011, três anos atrás – economista que tem dado relevante contribuição à área da Economia no Brasil

Finalmente, entre os 44 laureados, quero destacar que sou a primeira da área da Educação, uma das subáreas da grande área das Ciências Humanas e Sociais. Cito esses dados para fazer as seguintes reflexões:

A primeira reflexão é que recebo o Prêmio Almirante Álvaro Aberto assumindo-me como uma representante dos pesquisadores da área de Ciências Humanas e Sociais, Letras e Artes, o que considero uma grande deferência em uma área em que temos tantos pesquisadores e cientistas de imenso valor!

A segunda reflexão é que, sendo apenas a 3ª mulher entre os laureados até agora, posso me orgulhar por ampliar o reconhecimento das mulheres como colaboradoras na construção da ciência e da pesquisa no Brasil.

Finalmente, a terceira reflexão é que devo assumir a responsabilidade de representar a área que pela primeira vez é contemplada no Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia: a área da Educação.

É esta responsabilidade de representante da área da Educação que orienta as poucas palavras que vou dizer aqui; e, nesta condição, o que me parece pertinente, neste momento, é compartilhar minha reflexão sobre o que inspirou e o que caracteriza e explica a minha trajetória de pesquisa, ensino e ação na área da Educação, o que, em síntese, significa declarar o que tenho considerado ser o papel da ciência e da pesquisa na área da Educação, papel que assumi e assumo, portanto, que sempre considerei ser a minha incumbência – o adjetivo com que mais frequentemente me caracterizam, porque um dia eu com ele me qualifiquei, citando Clarice Lispector; é que sou uma pessoa permanentemente ocupada e incumbida – o que às vezes parece um elogio, outras vezes uma crítica...

Falo então do que tenho considerado ser o papel da ciência e da pesquisa na área da Educação. Nós, os da área da Educação, estamos permanentemente diante de um apelo para a compreensão, acompanhado de um apelo para a ação.

O que entendo por apelo para a compreensão: há uma frase no admirável romance histórico que é o Memorial do Convento, de José Saramago, uma frase que, desde que a li há muitos e muitos anos, se tornou para mim uma perfeita descrição do que motiva e orienta o pesquisador em Educação:

Tudo no mundo está dando respostas,

o que demora é o tempo das perguntas.

Respostas estão no mundo da educação à espera das perguntas do pesquisador. Temos, nós os pesquisadores, de responder ao apelo por compreensão: apreender as respostas que o mundo está dando, e formular as perguntas que se escondem sob essas respostas, em busca de compreensão – o caminho é a pesquisa.

Na área da Educação, talvez na área das Ciências Humanas e Sociais em geral, a compreensão, pela pesquisa, das respostas com que o mundo nos provoca nos põe em confronto com dois deveres desafiadores:

O primeiro dever é que a compreensão não leve a julgamento.

Nas ciências exatas e nas ciências da vida esse dever não se apresenta, porque os fenômenos físicos, químicos, biológicos são o que são; nas ciências humanas e sociais, esse dever de não julgar se impõe, porque os homens e as sociedades, se são o que são, nem sempre deveriam ser o que são...

E é por isso que a pesquisa – a compreensão do humano e do social – corre o risco do julgamento.

É Bourdieu que, definindo com admirável precisão o que deve ser a pesquisa sobre o ser humano e sobre grupos sociais – pesquisar é COMPREENDER –, cita Spinoza para definir o dever de não julgar:

Não deplorar, não rir, não detestar, mas compreender.

Ao pesquisador – e me restrinjo agora a nós, pesquisadores sobre a Educação, para tornar mais claro esse princípio – ao pesquisador:

Não cabe deplorar, rir, detestar quando se depara com respostas no mundo da educação; vou exemplificar, porque tem sido a minha área de pesquisadora, com o mundo do ensino, e do ensino da língua portuguesa:

Não cabe deplorar, por exemplo, o reiterado fracasso em alfabetização, os baixos resultados em leitura e escrita dos alunos, a evasão no ensino médio, os currículos inadequados – estas são respostas que o mundo nos está dando, não cabe deplorá-las, mas compreendê-las;

Não cabe rir dos erros, dos fracassos, das fraquezas – não cabe, por exemplo, rir de disparates que aparecem em provas do Enem e circulam pela internet como piadas – são respostas que o mundo nos está dando, não cabe rir delas, mas compreendê-las;

Não cabe detestar , por exemplo, as mais de 500.000 notas zero nas redações do Enem, como ocorreu em 2014, não cabe detestar a inadequada formação ou atuação dos professores – são respostas que o mundo nos está dando, não cabe detestá-las, mas compreendê-las;

Não cabe, enfim, deplorar, rir, detestar aquilo que é o que é, por não ser aquilo que teria de ser, que deveria ser:

Crianças e jovens deveriam saber ler e escrever, deveriam ser bons leitores, o ensino médio deveria ser de qualidade, os currículos deveriam ser adequados, os jovens deveriam ser capazes de produzir bons textos, professores deveriam estar sendo bem formados...

Ao pesquisador cabe compreender, buscar os porquês, as causas das perguntas que o mundo da educação nos está propondo.

E aqui vem o segundo apelo que mencionei, apelo à AÇÃO: compreender para AGIR .

Diante das respostas que o mundo está dando - diante do que é; diante da compreensão, pela pesquisa, do por que é assim, levanta-se o apelo à AÇÃO.

Primeiro, a compreensão, pela pesquisa;

Segundo, a ação, que a pesquisa motiva, demanda, mesmo exige e, sobretudo, orienta – a ação para transformar.

Em nosso país, como as respostas que o mundo da educação nos está dando nos conduzem à constatação da quebra dos princípios de igualdade e de equidade, a compreensão, se a buscamos pela pesquisa, forçosamente nos incita à ação – a mim, sempre incitou.

Não ações que se limitem a documentos doutrinários que proclamem o que deve ser, sem base no que é, no que tem sido - o que acontece com frequência. Na área da Educação, não há como compreender e nada fazer, mas também não se justifica definir o que deve ser sem ter compreendido o que é.

É o que me tenho atribuído, nos limites do campo de minha atuação:

- a pesquisa – a compreensão da educação pública, da escola pública, lá onde se constroem os alicerces da qualidade e da equidade;

- especificando ainda mais, tenho me atribuído a pesquisa e a ação no campo do ensino da língua materna – da alfabetização e do letramento, da leitura e da escrita, da formação de leitores e da formação de professores;

- não só porque a minha graduação foi no campo das Letras, mas sobretudo por escolha, pela convicção da importância de propiciar o instrumento fundamental para a equidade: o domínio da língua às crianças e aos jovens que estão nas escolas públicas, aqueles que não são herdeiros, como bem qualifica Bourdieu, inserir no mundo da escrita os que, ao contrário dos herdeiros, têm de enfrentar obstáculos sociais, econômicos, culturais que se sustentam quase sempre pelo poder da língua e só podem ser enfrentados com o poder da língua.

É nesse contexto que faço as reflexões que aqui fiz, em que tenho desenvolvido pesquisas para compreender, e a partir delas empreendi e tenho empreendido ações para intervir.

E, atualmente, quando já seja talvez o tempo não mais de lutar, mas de viver em paz, como diz o Eclesiastes:      

Há tempo de lutar e tempo de viver em paz,

meu tempo ainda é de lutar, escrevendo artigos, livros, e fazendo acontecer uma educação de qualidade com equidade, nas escolas públicas de um município de Minas Gerais, Lagoa Santa, articulando compreensão e ação, teorias e práticas.

Para terminar: este Prêmio é concedido a alguém que vem se orientando pelo lema que aprendeu internalizou muito cedo na formação familiar e religiosa:

Conhece o dever e cumpre-o.

Tenho procurado conhecer meu dever com a educação pública e tenho tentado cumpri-lo – pela pesquisa e pela ação, e agradeço por ser isto o que penso ter sido reconhecido por aqueles que me concedem o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e a Tecnologia.

5 de maio de 2015