A "literacia familiar" substitui o que a escola pode fazer?

Troca de Ideias | Letra A 54


     

Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 15:41:00

 
Clécio Bunzen - professor do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino (DMTE) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
 
A ‘literacia familiar’ não substitui as múltiplas ações que as escolas podem fazer nos diferentes componentes curriculares. Os eventos e as práticas de leitura e escrita que ocorrem nas esferas familiares possuem objetivos, funções, valores e crenças diferentes dos da esfera escolar. Um dos desafios da educação formal é justamente ampliar os mundos do letramento vernaculares, inserindo as crianças na compreensão e no uso das culturas (orais, escritas, corporais, sonoras, imagéticas, etc.) das diferentes esferas da atividade humana. A “literacia familiar” sozinha não dá conta de tal ação educativa. O trabalho pedagógico pressupõe um trabalho coletivo, realizado por diversos profissionais.
 
Ele está também fortemente relacionado com processos sistemáticos de ensino-aprendizagem-avaliação dos mais diversos conhecimentos, discursos e textos. Algumas práticas de leitura e de escrita, por exemplo, podem ser proibidas em algumas famílias e outras exigem o uso de objetos culturais que não são acessíveis a todos (gibis, livros literários impressos e digitais, suplementos infantis, enciclopédias, dicionários, jogos de tabuleiro, etc.). Por isso, a ideia de “substituição” parece-me bastante inadequada. Prefiro pensar em diálogo/parceria/colaboração entre as redes familiares e as escolas no intuito de ampliação das práticas sociais da leitura e da escrita nas múltiplas esferas da atividade humana. O diálogo de práticas culturais entre as escolas e as respectivas redes familiares pode, na realidade, ser um dos princípios de uma pedagogia da participação que valoriza a construção do conhecimento, das experiências, das memórias, dos afetos, das reflexões e dos significados. A escola precisa do envolvimento das comunidades, das redes familiares e de outros agentes para concretizar uma pedagogia da participação.
 
No entanto, o atual Ministério da Educação aposta em um conceito muito restrito de “literacia familiar”. Ignora-se, infelizmente, as relações complexas da leitura e da escrita com aspectos religiosos, geracionais, raciais, de classe social e de gênero nos lares. Tal escolha política não é neutra e favorece uma “pedagogia transmissiva” em que o centro deixa de ser a criança para serem os materiais estruturados. A lógica perversa de tal “substituição” está, a meu ver, fortemente ancorada na defesa do “homeschooling” para atender a interesses capitalistas de ampliação de materiais pedagógicos (livros, apostilas, cartilhas) e de cursos para as redes familiares. 
 
Maria Lúcia Castanheira – professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
 
Escrevo em meio à pandemia da Covid-19. Estamos em luto pelas vidas perdidas e saudosos de encontros para além das paredes de nossas casas. Neste momento, um dos espaços sociais que estão fechados é a escola. Nela ampliamos nosso círculo social para além do círculo familiar ao conviver com colegas, amigos, professores e funcionários. Na escola podemos ter acesso a um rol de práticas discursivas, o que inclui produções literárias, científicas e aquelas do cotidiano. Nesse espaço, temos a possibilidade de ampliar os horizontes da “literacia” ou do “letramento”, iniciado na esfera familiar.
 
Há, hoje em dia, uma disputa terminológica – “literacia” ou “letramento”? - no contexto educacional brasileiro. Não há espaço neste texto para discutir o quadro político em que tal disputa se dá. Entretanto, vale lembrar que esses termos se vinculam à concepção do letramento como prática social, ou seja, ao reconhecimento de que os significados atribuídos à escrita variam de um contexto social para o outro. Assim, as expectativas sobre o que, como, quando e para que escrever e ler, por exemplo, são diferentes se estamos em casa, na escola, na igreja ou no trabalho.
 
A pandemia aprofundou a desigualdade social brasileira. Sem poder ir à escola, milhões de crianças encontram-se sem merenda escolar, sem o convívio com pares e professores, sem bibliotecas e sem aulas. Sem acesso à internet, não podem ‘transferir’ a escola para o mundo virtual. A desigualdade entre grupos sociais para ter acesso e dar continuidade à educação já era patente antes da pandemia e, depois dela, se tornou mais evidente. 
 
A família e a escola buscam responder ao ‘novo normal’ pós-pandemia. Não podemos prever quando e como será o retorno às aulas. No entanto, em qualquer circunstância, os afetos, os conhecimentos e os significados da escrita para os alunos precisam ser ponto de partida para o planejamento do ensino. É impossível negar o papel da escola na ampliação do acesso ao mundo da escrita e, para além do acesso, reconhecê-la como espaço de possibilidades para refletir e aprender sobre os usos e as funções sociais da escrita em nossa sociedade. Isso é necessário para formar cidadãos capazes de reconhecer o papel da escrita na (re)produção de relações de poder, identidades e desigualdades sociais.