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Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 18:01:00

 
Correspondência digital
Professora cria projeto que incentiva a escrita no contexto de distanciamento social
 
Por Fernanda Tubamoto
 
A paralisação das escolas no início de 2020 provocada pela pandemia do novo coronavírus trouxe, dentre outros inúmeros problemas, a dúvida sobre como ficaria o relacionamento entre os professores e os alunos e suas famílias, principalmente no ensino básico, quando esses laços são essenciais para o bom desenvolvimento das crianças. “Qual seria o posicionamento diante desse quadro?”; “Como atuar em relação às propostas das atividades?” foram questionamentos levantados no início desse período que definiriam o calendário e as atividades de modo remoto.
 
Com isso em mente, a professora alfabetizadora Kely Souto, do Centro Pedagógico da UFMG, propôs uma forma de interação com seus alunos em processo de alfabetização do segundo ano, a partir do gênero carta, para continuar desenvolvendo com eles a dimensão afetiva que já havia sido cultivada um ano antes, presencialmente.
 
Ela conta que já tinha a prática de explorar gêneros discursivos em sala de aula, trabalhando com bilhetes, cartas, poemas, contos e narrativas em geral, e que, com a pandemia, veio a dúvida de como dar continuidade aos projetos. De um dia para o outro, o contato diário com as crianças foi rompido, mas Kely não queria deixar que acontecesse o mesmo com o vínculo afetivo. Dessa forma, criar alguma forma de comunicação foi uma prioridade, e a prática de escrever cartas se apresentou como um recurso muito importante.
 
No dia 2 de maio de 2020, Kely enviou com seu e-mail institucional, como uma sugestão e parte de uma atividade não obrigatória, sua primeira carta às crianças através da página do Centro Pedagógico na internet, contando um pouco sobre sua rotina na quarentena. Ao relatar as atividades que estava realizando, demonstrou interesse em saber das experiências de seus alunos nesse período de distanciamento, incentivando-as a falar sobre o dia a dia delas. Isso foi crucial para que uma possível correspondência pudesse ocorrer, motivando as crianças a responderem a carta recebida. “Eu falei de mim, e aí eles começaram a falar deles também”, conta.
 
Na próxima carta, como o meio digital também possibilita a inserção de vídeos e áudios, Kely decidiu aproveitar tal recurso: além de redigir um texto falando sobre alimentação, anexou uma receita de pão e inseriu um vídeo dela fazendo o passo a passo, como um tutorial. O retorno foi muito positivo, com os alunos contando o que tinham feito em casa e enviando várias cartas com fotos deles na cozinha. Uma das crianças chegou a fazer a mesma receita que a professora havia mandado.
 
Após o sucesso da ideia da receita, Kely se inspirou na música Janela Lateral, de Beto Guedes, para desenvolver sua próxima carta. Ela contou para seus alunos o que via de sua janela, e disse que ficava imaginando o que eles viam da janela de suas casas. Anexou com a carta uma foto de sua vista e solicitou que eles fizessem o mesmo nas respostas. A professora destaca uma, que dizia que a foto enviada era da casa da avó da criança, pois a vista era mais bonita que a de sua própria casa, contando que via coisas ruins de lá, mas na casa da avó poderia ver um jardim bonito.
As famílias concordam com a importância das cartas, afirma Kely. Ela conta que em sua turma há crianças que já escrevem e seriam capazes de, sozinhas, redigirem as cartas, e há crianças que precisam do auxílio de um adulto para a atividade. Neste grupo, ela observou uma preocupação maior dos responsáveis do que no grupo daquelas crianças que já têm autonomia para escrever. “A família sentiu a importância da escrita naquele momento. Isso, para mim, foi um dado importante porque valorizou ainda mais a proposta dessa interação (...). Eu percebi que a família se empenhou muito para que aquela carta tivesse uma resposta que fosse enviada para a professora”, comenta ela, que recebeu respostas significativas de crianças que ainda nem tinham se apropriado do sistema de escrita, mas tiveram ajuda da família.
 
Entretanto, apesar do aproveitamento e da adaptação da atividade para o contexto da pandemia e do consequente distanciamento social, o uso de cartas já havia sido bastante trabalhado em momentos anteriores em aulas da professora Kely. Ela comenta sobre dois momentos marcantes: um no primeiro e outro no segundo ano do ensino fundamental, em que alunos passaram por cirurgias e seus colegas de classe decidiram escrever cartas para eles como uma forma de apoio no momento da recuperação. Junto com os alunos, Kely conta que construíram coletivamente o modelo da carta com todos os requisitos que o gênero discursivo pede, contando com um texto coletivo e uma ilustração de cada criança. Com isso, já havia sido mostrada para as crianças a necessidade do contato afetivo com pessoas que estão distantes.
 
Também por esse motivo que a professora diz que não se vê criando atividades futuras, no modo presencial, a partir de cartas que não tenham significado em uma dimensão real. “Quando ela [carta] tem significado na prática, que se aproxima do real, eu gosto de usar. Artificialmente, não. Os dois momentos em que eu tive de [escrever uma] carta na minha sala foram situações em que a carta teve um uso real, no qual a gente atribui a ela o nosso dia a dia. Houve uma necessidade, um interesse. E o mesmo aconteceu agora, no momento de pandemia”, diz Kely, quando perguntada sobre a possibilidade da continuidade do projeto de correspondências quando as aulas voltarem à modalidade presencial. “No retorno [das atividades presenciais], a carta vai existir se houver uma condição que se aproxime do real, porque eu acho que [a carta criada artificialmente] desmotiva a criança. [Ela] não tem clareza do para quê ou para quem, então eu gosto de pensar no funcionamento, na prática social que esse texto cumpre entre nós”, completa.
 
Logo após o início do ensino remoto emergencial (ERE), a professora deu retorno às outras atividades propostas também por meio de cartas. As crianças faziam as atividades através da plataforma Moodle, mas os retornos de Kely foram por meio de cartas, pois, para ela, este gênero promove um contato mais humano do que uma pequena observação na própria plataforma em que as atividades foram postadas possibilita. 
 
Kely também destaca a importância de pensar no papel da família e nas condições desta para acompanhar as crianças. “Em momento algum eu tive a expectativa de que, mandando a carta, todos os pais responderiam. Estamos vivendo um momento muito delicado (...) e eu estou propondo uma interação, não exigindo, e existem maneiras diferentes que eles [os pais] têm de lidar e estabelecer um contato com a gente. Nesse momento, o professor tem que criar diferentes possibilidades para as famílias (...), porque os impactos são muitos. Temos que lidar com a diversidade. É assim que a gente consegue respeitar o que todo mundo está vivendo, cada um nas suas condições.”