Leituras e escritas sempre sob um olhar contextualizado | parte 2


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Agosto de 2020, 17:18:00

 

- Qual é o papel dos estudos sobre letramento atualmente na compreensão dos processos de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita?

 
Eu acho que os estudos sobre as práticas sociais de letramento contribuem para relativizar e fortalecer o papel da escola numa sociedade tão desigual como a nossa. Por um lado, é preciso considerar que a escola precisa reconhecer que as pessoas participam de eventos de letramento em diversas situações sociais vividas fora dos muros da escola. A escola não é a única agência de letramento. Os alunos têm experiências e conhecimento sobre a escrita, sobre os seus usos sociais, têm relações afetivas com a escrita, vinculações com grupos que utilizam da escrita para manifestar seus posicionamentos e sua visão de mundo, sejam esses grupos religiosos, políticos, culturais. A escola, com frequência, desconhece ou não reconhece essas produções. Então, os estudos do letramento demonstram a necessidade de reconhecer em que outros espaços e grupos sociais para além da escola, no contexto familiar, no contexto religioso, que a escrita se faz presente.
 
Por outro lado, esses estudos do letramento como prática social também reforçam ou lançam luz sobre o papel social da escola na construção do acesso a um saber científico, acadêmico. E por meio da formação dos alunos como cidadãos informados e críticos, a escola pode contribuir para mudanças estruturais da sociedade que persiste em reproduzir preconceitos e desigualdades sociais. É papel da escola criar condições para que as pessoas possam aprender e ampliar seus horizontes. Então é nesse sentido que se deve pensar sobre como a escola, ao invés de fechar e limitar aquilo que se pode conhecer, pode ser um lugar de ampliação desse universo do conhecimento por parte dos alunos.
 
Quero destacar que, num contexto atual em que nós temos novas tecnologias de comunicação, as abordagens de estudos das práticas de letramento vêm nos lembrar que o acesso, o uso e os significados de novos recursos tecnológicos de comunicação também variam de um lugar para outro. Precisamos ter sempre em mente que os usos das novas tecnologias vão estar situados e relacionados a outras práticas sociais, sejam religiosas, escolares, familiares. As pessoas hoje falam muito de letramento digital e, por vezes, tratam o letramento digital como algo autônomo, desenraizado, assim como alguns falam da escrita de maneira descontextualizada. E vão começar a classificar as pessoas como menos letradas tecnologicamente e mais letradas tecnologicamente. Como se a tecnologia fosse um bem neutro que em si só já é um bem, que, uma vez que a pessoa domine essa tecnologia, ela se torna uma pessoa superior às outras. Uma abordagem do letramento como prática social não vai perder de vista que o que interessa é conhecer o que as pessoas fazem com as novas tecnologias e as consequências disso para indivíduos e sociedade.
 

- Você tem investido nos estudos sobre o letramento acadêmico, qual o potencial de estudar sobre letramento acadêmico para a compreensão das trajetórias de estudantes e sobre o ensino?

 
Por várias décadas foram feitas pesquisas sobre práticas de letramento em escolas do ensino fundamental ou do segundo grau. Muitas pesquisas foram desenvolvidas também em comunidades distantes, na periferia das cidades, ou em outros espaços públicos. 
 
Foi somente no final da década de 1990 que a universidade passou a ser um espaço de investigação a partir de uma abordagem do letramento como prática social.  Então, a universidade passou também a ser um locus de investigação sobre como se dá o uso da escrita na formação profissional. De que maneira as práticas de leitura e escrita se dão na universidade? O que se lê e para que se lê ou se escreve na universidade? Quais as consequências dessas práticas para a aprendizagem e a formação dos alunos e a produção do conhecimento?  
 
E como que essas condições de produção e leitura no espaço universitário relacionam-se a processos de construção de identidades, do estabelecimento de relações de poder entre as pessoas nesse espaço? Quem determina e avalia o que é uma boa produção, o que é um bom relatório de trabalho, o que é uma pesquisa relevante, o que é um assunto relevante de ser pesquisado, como que essas coisas se dão?
 
Você mencionou a questão da trajetória dos alunos. O estudo de questões como essas produz, por exemplo, elementos para a compreensão das diferenças encontradas pelos alunos ao longo de sua trajetória escolar. Alguns estudos têm destacado o momento de transição do aluno que vem de um segundo grau e entra para a universidade. Então, você tem uma diferença do que eram demandas e expectativas, direitos e obrigações de estudantes e professores nos diferentes níveis de ensino como também diferença no que se entende para que e como se deve escrever e ler.
 
Quando um estudante entra na universidade ele ou ela vão encontrar um mundo de relações e práticas diferentes nesse espaço. As demandas e as expectativas de como fazer um trabalho, de como trabalhar com certos gêneros textuais, por exemplo, passam a existir ou, se já existiam, são modificadas.  Fica muito evidente que na universidade as diferenças são significativas e leva tempo para o aluno entender como a coisa funciona. E muitas vezes para os professores isso também não é claro.
 
Então, os estudos sobre práticas de letramento acadêmico têm sido muito fecundos em lançar luzes sobre várias nuances dos processos educativos que ocorrem na universidade. Eles apontam a necessidade de continuarmos a buscar conhecer como as experiências de leitura e escrita que os alunos têm antes de entrar na universidade ou que vivem fora do espaço acadêmico influenciam e informam as maneiras dos alunos se verem nesse espaço institucional e se engajarem no seus estudos. 
 

- Em seus estudos sobre dificuldades de aprendizagem, você percebeu padrões? Quais as principais questões que estão em torno das dificuldades?

 
O primeiro ponto que precisamos considerar ao pensar sobre dificuldades de aprendizagem é que nenhuma aprendizagem acontece no vácuo. Portanto, as dificuldades de aprendizagem também não acontecem no vácuo. Se a gente considera que os processos de aprendizagem são socialmente situados, ou seja, eles têm uma história na vida pessoal de cada aluno, precisamos também considerar que aquilo que foi identificado como dificuldade de aprendizagem também tem sua história, que nunca pode ser resumida ou focalizada somente no indivíduo. Existem outros fatores que precisam ser investigados e considerados para entender por que certa dificuldade se instala e se manifesta na história daquela pessoa. De um aluno, seja criança ou adulto. 
 
Uma decorrência disso é que, se eu entendo que há uma história da aprendizagem ou da “desaprendizagem”, ou da dificuldade de aprender, [entendo que] ela é multifatorial. Tanto o percurso dessa pessoa que apresentou dificuldade, quanto aquilo que foi ofertado a ela e o que aconteceu nesse percurso colaboram para que a ‘dificuldade’ exista. Por exemplo, Sara Mourão Monteiro [professora da FaE/UFMG], em sua pesquisa de doutorado, que orientei, acompanhou crianças com dificuldade de aprendizagem na rede pública. E uma das coisas que eu lembro da pesquisa dela foi como o trabalho quase exclusivo com uma cartilha silábica, para algumas crianças, contribuía para que elas pensassem que as palavras eram compostas por sílabas de uma mesma estrutura: consoante-vogal.
 
Ela percebeu que havia um padrão. Algumas crianças tinham dificuldades e paravam ali porque elas tentavam ‘corrigir’ todas as sílabas para esse padrão silábico. Quando aparecia, por exemplo, a palavra ‘anjo’, como ela nunca tinha trabalhado com essa sequência de vogal-consoante, ela [a criança] invertia. A palavra anjo era transformada em ’najo’. Então, a dificuldade aparece aí por causa de uma limitação de oferta que tinha sido dada para a criança e uma insistência num determinado padrão de texto. Você não poderia dizer que a dificuldade é da criança. Aparece nela, mas é decorrência de um leque restrito de experiências que tinha sido dado a ela.
 
Quando se começa a trabalhar com uma criança que apresenta certa história de dificuldades na escola, um dos primeiros pontos é conseguir estabelecer com essa pessoa uma conexão para que se sinta apoiada por alguém que vai ter uma escuta. Porque, muito frequentemente, aquela pessoa passou anos encontrando barreiras para a aprendizagem. Muitas vezes ela se vê incapaz de aprender. 
 
Todo aprendiz aprende melhor, se envolve mais com aquele processo de ensino-aprendizagem quando algo tem uma ressonância maior na vida dele. Então, no processo de trabalho com a pessoa que apresenta esse histórico, é fundamental descobrir como retomar esses laços, de ela ver que é capaz sim, e que o erro faz parte do processo. E, aliado a isso, é necessário identificar pontos de interesse. Por exemplo, em uma das escolas em que trabalhamos, havia um grupo de meninas de 14 para 15, 16 anos, que tinham algum comprometimento mais sério às vezes neurológico ou psiquiátrico. Essas adolescentes estavam há muitos anos nessa escola e por anos não haviam aprendido a ler e escrever, apesar de vários esforços que haviam sido feitos pelos professores. 
 
Durante um trabalho de estudo de caso que fizemos nessa escola, uma das professoras tomou para si a reorganização desse grupo, sabendo que elas iriam sair da escola. A partir de 16 anos, teriam que ir para a educação de adultos. Então, essa professora formou um grupo com essas alunas e passou a estudar com elas a leitura, vinculando a questões de beleza, que era algo do interesse delas: nome de esmalte, tonalidades de coisas de maquiagem. Então, ela fez um programa bastante particular para essas meninas e a coisa funcionou, as meninas passaram a ler. 
 

- Poderia destacar quais aprendizados teve sobre o ensino da leitura e da escrita, durante sua trajetória profissional, que até hoje lhe orientam?

 
Uma das coisas que eu aprendi nessa trajetória, tanto escolar quanto profissional, que eu pude reconhecer ao longo dos anos e fortalecer, é uma visão de como a nossa compreensão se amplia e aquilo que podemos produzir é fortalecido quando nós trabalhamos em colaboração com outras pessoas. 
 
Seja no momento em que você faz uma reunião de grupo de alunos orientandos na qual, além da minha leitura como professora, há a leitura dos colegas, que também trocam ideias sobre um trabalho, ou a discussão do grupo que se dá sobre um determinado conceito; seja em momentos de colaboração com os colegas, quando um texto que alguém está produzindo passa para um leitor, o leitor faz suas críticas e retorna. 
 
O conhecimento é provisório, então apresentamos aos pares para que seja discutido, revisto. É assim que as coisas podem ir adiante e podemos ampliar nossos conhecimentos. É o desafio de entender a partir de diversas perspectivas. Então, eu posso considerar uma análise do ponto de vista de um professor, do ponto de vista de um aluno, e a partir de diferentes abordagens teóricas ampliar minha visão. 
 
 

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