Ler antes de ‘saber ler’

Mesmo sem serem alfabetizadas, as crianças pequenas podem vivenciar a literatura por meio da oralidade, do manuseio de livros e da leitura mediada


     

Letra A • Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014, 15:14:00

Por João Vítor Marques

Já no berço, a literatura suscita o riso, o choro, o espanto, o medo, e faz conhecer universos que jamais seriam visitados se não fossem suas histórias. O contato com narrativas literárias não se restringe ao texto escrito, e geralmente tem início com os contos e as cantigas escutados pelos bebês desde o nascimento. À medida que cresce, a criança conhece o livro e vê as possibilidades de leitura aumentarem, por meio da mediação do professor e da família.

Ter contato com livros desde muito cedo é o ponto de partida para a inserção numa cultura centrada na escrita. Para a pesquisadora francesa Dominique Rateau, autora de livros sobre leitura para bebês, o fundamental não é que a criança compreenda uma mensagem específica, mas que perceba a existência de significados no texto mediado por um leitor proficiente. “Quando a criança vê que o pai reage diante de uma imagem presente em um livro, ela se dá conta de que aquilo tem um significado e que se pode ler desde o nascimento, ainda que em um nível inicial de interpretação”, explica. A familiaridade com o livro permite que a criança assimile, pouco a pouco, a ideia de que a sequência das páginas conformam uma narrativa. Além disso, também começa a conhecer os elementos básicos do suporte, como a presença do título, a divisão em capítulos e o nome do autor, produzindo gestos de leitura que podem ser materializados, por exemplo, no passar das páginas impressas ou no toque sutil na página digital.

É comum que os livros indicados para a fase da Educação Infantil reproduzam parlendas, adivinhas, trava-línguas e outras manifestações da tradição oral que, devido às rimas e repetições, são encaradas como brincadeira pela criança. No entanto, esse caráter lúdico não garante, por si só, uma leitura ampla e proveitosa. Segundo a pesquisadora do Ceale e professora da Faculdade de Educação da UFMG Zélia Versiani, o fundamental é que o mediador não restrinja o número de interpretações possíveis da história. “Dependendo da pergunta que se fizer à criança durante a leitura de um livro, o processo de compreensão pode ser orientado a apenas certo tipo de interpretação. O ideal é uma leitura mais aberta, plural, que permita até opiniões diferentes a respeito de uma mesma narrativa”, explica.

Pedir às próprias crianças que contem histórias a partir dos livros que são lidos para elas é outra forma de aumentar sua intimidade com a literatura. Com seus alunos de 4 anos, Alessandra Fernandes, professora de Educação Infantil da Escola Municipal Henfil, em Belo Horizonte (MG), seleciona uma criança por semana para recontar a narrativa de um livro. Com a mediação da família, ela conhece a história e os elementos da obra, para depois compartilhá-los com os colegas. “É interessante porque um mesmo livro dá origem a aulas completamente diferentes a cada vez que é contado, em razão da subjetividade da criança. A obra Tuco, Guto e Vovó, por exemplo, já suscitou relatos até sobre a morte, por causa da perda da avó pela aluna que o contou, ainda que esse tema não estivesse presente no enredo”, conta a professora.

 

A cada idade, uma leitura

A mediação não se restringe ao momento em que a história é lida para as crianças, mas perpassa também a escolha de títulos, o objetivo da leitura e seus respectivos desdobramentos. Essa seleção de histórias muitas vezes se dá com base no gosto pessoal ou na intuição do adulto. No entanto, os critérios podem ser mais objetivos e contemplar maior diversidade de temas.

Idade e capacidades físicas e motoras podem direcionar a escolha, conforme explica a pesquisadora da Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), Cristina Correro. “Quando o bebê é muito novo e ainda não consegue sair da cama e se mover, é recomendável que tenha contato primeiro com a voz de sua mãe, com a literatura oral tão importante dos cantos e brincadeiras”, aponta.

Entre 6 e 12 meses, a criança aprende a sentar e adquire maior liberdade nas mãos. Para esse momento, Cristina indica livros com imagens e sons que possam ser manuseados pelos bebês. Quando a criança começa a aprender a falar, já se tornam mais interessantes obras que tragam o texto escrito: “Assim, ela pode, com o dedo, ir marcando os objetos e o mediador ir dizendo a palavra. Livros de primeiros conceitos e livros de imagens enriquecidos com textos são adequados para este momento”, explica.

Na mesma época em que aprende a andar, a criança desenvolve maior familiaridade com a linguagem escrita. “A capacidade de concentração se amplia. Desse modo, a partir dos 24 meses de vida, já podemos selecionar histórias maiores, imagens mais complexas e ir ampliando esse itinerário”, completa Cristina.

 

Olhar e escutar histórias

As narrativas literárias geralmente são contadas aos mais novos por meio da oralidade. Hoje, por mais que a leitura de livros tenha ganhado espaço na Educação Infantil, a transmissão oral ainda se faz muito presente nas atividades de contação de histórias. Nessa prática, o contador se vale mais da expressão corporal e tem maior autonomia em relação ao texto. “Quando contamos, estamos com o olho livre, pois ele não precisa estar no livro. Isso serve como um termômetro, pois você consegue sentir as emoções que vêm de lá para cá, e crescer a história, acelerá-la, fazer as pausas na hora certa para buscar o riso. A história vai longe”, explica a contadora de histórias e pesquisadora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Luciene Souza.