Princesa? Só em conto de fadas!

Retirando a personagem de seu universo ficcional, “Escola de Princesas” carrega uma concepção do feminino atrasada, inconsistente e incoerente com o momento contemporâneo


     

Geral • Terça-feira, 10 de Setembro de 2013, 13:34:00

Imagem: cenas de performance de André Luz, estudante de teatro da Universidade Federal de Uberlândia, em resposta à Escola de Princesas.

Retirada da página "Escola de Ogras" no Facebook.

No início de 2013 foi criada em Uberlândia a “Escola de “Princesas”, que levantou discussões sobre a condição feminina e o universo ficcional literário. A escola já teve mais de 500 alunas matriculadas e possui uma longa fila de espera. Entre os temas tratados nos cursos oferecidos estão estética, boas maneiras, organização, limpeza e casamento. As alunas, que possuem entre 4 e 15 anos, passam o dia aprendendo a se portar a mesa, a vestir-se como uma “princesa” e a esperar pelo seu príncipe. Para falar sobre o tema, entrevistamos a pesquisadora Mônica Correia, da Faculdade de Educação da UFMG.

 

  1. O que você acha do método da Escola de Princesas?

 

É uma espécie de escola de férias, não é uma proposta de escolarização formal. E não é regulamentada por nenhuma norma de sistema escolar, portanto é livre para fazer aquilo que achar que deve fazer. A regulamentação é feita pelas famílias das crianças e a própria sociedade é que vai atribuir valor a este tipo de educação, que não é sinônimo de escolarização, mas que é uma atividade educativa. Acho que essa proposta tem alguns equívocos: um tem a ver com o que ela valoriza na formação feminina, o que acho bastante grave no ponto de vista da formação de mulheres para o século XXI. O segundo equívoco, eu diria que está mais no campo da literatura ou das narrativas ficcionais.

Do ponto de vista do que se considera adequado a se ensinar a uma criança, acho que é uma proposta que eu classificaria como fútil. Ela carrega uma ideia de mulher, do que é o universo feminino, e acho que isso não é condizente com o que estamos construindo no mundo na sociedade ocidental do século XXI. Valoriza-se o aspecto da vida privada, como se vestir bem, receber convidados... Há também um estímulo grande de uma estética ideológica, da mulher que é uma princesa estereotipada. Quando acesso o site, fica evidente que a proposta não foge disso: ela nos leva a ver um apelo a uma concepção de feminino e de mulher submissa, mais pautada na vida privada, como foi tão típico dos séculos XVIII e XIX. E não no que a sociedade contemporânea coloca como mulher, que é enfrentar os problemas da vida pública, saber se manifestar, construir um espaço para além da vida privada. “Como se portar na mesa”, por exemplo, diz respeito a um conjunto de regras que, além dessa concepção do universo feminino, eu diria que têm um aspecto classista. Não são as mulheres de qualquer classe social, são as princesas, que ocupam um lugar de destaque. Ensina-se o que as separa de outro grupo social, ou seja, remetem a um contexto de dominação, aquilo que as distancia da classe economicamente desfavorecida. É um conteúdo que eu diria que é complicado para essa proposta, acho que ela é retrógrada, fora do tempo, da ordem, do contexto histórico que nós mulheres estamos vivendo. O que me deixa triste é saber que tem muita gente que ainda acredita nesse formato feminino, nessa ocupação da mulher na sociedade. É preciso refletir sobre o que Pierre Bourdieu chama de “efeito de distinção” (só uma classe sabe que não se pode colocar o cotovelo na mesa). Que importância isso tem do ponto de vista social? Não são esses os valores que a sociedade está requerendo para que se construa a sociedade. São valores de uma burguesia retrógrada, uma concepção do feminino também atrasada, inconsistente, incoerente com o momento contemporâneo.

O outro eixo problemático é o que se faz com o texto da narrativa ficcional tradicional. Junto das princesas, existem as bruxas e os monstros, ou seja, não se pode colocar um personagem em relação com o mundo real retirando-o desse universo de fantasia. Imagine se eu abrisse uma escola de bruxas e ensinasse a fazer maldades e feitiços? A bruxa que existe no universo ficcional deve estar em contraponto com a princesa e o príncipe. Essa jogada do bem com o mal é quase um efeito químico. Assim como posso fazer uma bomba atômica misturando elementos químicos, é isso que se faz com a imaginação e a ficção. Isso é muito perigoso para a formação das crianças. Esses sujeitos precisam ter acesso à ficção na forma que ela acontece no mundo ficcional – e não retirando esses valores do contexto, sem contrapor aos outros personagens que nos ajudam a entender a contradição do que é ser princesa. Só existe a princesa porque existe a bruxa, e esse elemento é muito importante para trazer a perspectiva de que eu também posso ser bruxa. Quem decide o que ser é o sujeito leitor. Uma escola de bruxas seria inadmissível, assim como na minha concepção é inadmissível usar um elemento na ficção, com valores que sabemos que precisam ser superados. Já rompemos com a ideia de que a mulher compete ao lar e de que seu papel é administrar bem as coisas que a sociedade do século XVIII acreditava serem dignas do universo feminino.

Quando conheci o site, pensei que as princesas poderiam ser como as das narrativas ficcionais contemporâneas, que estão explorando a personagem de maneira lúdica, irônica e cheia de humor. Princesas que trabalham fora, que se recusam a casar com um príncipe e ser felizes para sempre... Mas trata-se da princesa do jeito mais submisso, classista, elitista e burguês (na concepção do século XVIII) que se poderia imaginar.

 

  1. Você acha que existe um impacto muito grande desse formato de educação nas crianças?

 

Tem um impacto muito grande porque é claro que há um encantamento. Não é à toa que as histórias com essas narrativas tradicionais encantam as crianças há séculos, elas querem ser princesas. Existe um apelo muito grande, já que as princesas são loiras de olhos azuis. Ideologicamente, isso é um perigo na nossa sociedade, com tanta beleza no ponto de vista da diversidade. Por mais que estejamos rompendo com amarras sociais, a quantidade de pessoas que se inscreveram nessa escola mostra que existe um segmento na sociedade que ainda valoriza muito esses atributos da mulher. Isso me deixa muito triste. Já que alguém teve a infeliz ideia de fazer uma Escola de Princesas, gostaria que não houvesse público. Eu diria que essa sociedade iria querer construir novos valores para a mulher, para que ela se insira na sociedade de outra forma que não a submissão e sem se enaltecer. Não é que elas devam ser proibidas, absolutamente. Deve-se abrir a discussão sobre esses valores, sobre o que está se enaltecendo, sobre que mulheres queremos ver daqui a 20 anos na sociedade brasileira. Se são essas que sabem colocar uma mesa ou se são aquelas que sabem conquistar seu espaço na vida pública, que não têm medo de enfrentar a barreira para ser uma boa profissional, conquistar um lugar social, no ponto de vista de ajudar esse país a se tornar um país mais justo. É importante discutir o que é ser mulher na sociedade contemporânea. Eu acho que essa proposta tem uma ideologia, uma concepção de mulher, uma noção de estética que são contrárias àquilo que eu defendo que deve ser ensinado às crianças. Acho que também existe um sintoma em não se querer analisar profundamente o fato de separarmos meninas e meninos. Não é assim que se constrói a identidade feminina e masculina, mas sim em conjunto. Não queremos um príncipe que vai nos fazer felizes para sempre, queremos um companheiro. Os homens dessa geração não querem princesas para cuidar, mas sim uma companheira. Então acho que é bastante inadequado do ponto de vista ideológico, pedagógico e estético.

 

  1. Existem outras formas de ensinar às meninas a limpar, lavar e etc?

 

Existem, não só para meninas, como para meninos. Por que não existe um ambiente lúdico e imaginativo de fantasia em que meninos e meninas aprendam essas coisas? Pensar hoje que o trabalho da casa só cabe à mulher é de um atraso muito grande. Queremos que as crianças entendam que o trabalho seja coletivo e sem exploração.

Acho que isso não está dado para princesas e príncipes, mas sim para todos os moradores do reino.