A construção da Educação Inclusiva no Brasil

Apesar dos avanços e das conquistas, a visão sobre inclusão na sociedade e na escola ainda precisa evoluir


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 14:17:00

 
Por Pedro Eufrosino
 
No dia 1º de dezembro de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli suspendeu o Decreto nº 10.502/20, que previa a implementação da Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida (PNEE), considerada por especialistas, e pelo ministro, em sua justificativa, um retrocesso que coloca em risco as conquistas das pessoas com deficiência na esfera educacional. O documento deixava a cargo das famílias a opção de matrícula no ensino regular ou no ensino especial. Luiza Corrêa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), afirma que a nova política se apropria das palavras e convenções rebuscadas, aprendizagem ao longo da vida e educação inclusiva, para (re)criar um modelo de escola segregada para os estudantes com deficiência.
 
Dias antes da decisão no STF, o ministro da Educação Milton Ribeiro expressou falas capacitistas a respeito da escolarização das pessoas com deficiência. Afirmou que “algumas são de impossível convívio” e “incapazes de escolarização”. Para a coordenadora de advocacy do IRM, o pronunciamento do ministro não é aleatório, pois há setores das instituições especializadas que possuem interesses no resgate da ideologia capacitista, de que os estudantes com deficiência são incapazes ou menos capazes de serem alfabetizados e atrapalham os demais estudantes nas salas regulares.
 
A vivência dos estudantes e das pessoas com deficiência, como um todo, é marcada por intensa luta social e conquistas que demoraram décadas para se firmarem. Luiza acredita que há um projeto de desmonte da educação inclusiva: “Todos os dias a gente resiste e se mobiliza para conseguir manter as vitórias alcançadas. Temos lutado para evitar retrocessos, o que dificulta a conquista de novos avanços.”  
 
Histórico
 
Os primeiros institutos educacionais para as pessoas com deficiência datam da época do Império no Brasil, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854) e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos (1857), fundados por Dom Pedro II. Nas décadas de 20 e 30 do século XX, houve a implantação das primeiras “Escolas Especiais'', que produziram efeitos significativos para o início da escolarização de pessoas com deficiência no país; mas, também, para a construção de um modelo de segregação educacional desse público. A justificativa para a separação das pessoas “diferentes” em classes especiais era a de que, se estivessem reunidas em um grupo à parte, poderiam ser melhor atendidas em suas especificidades educacionais. Décadas depois, a LDB n.º 4024/61 (Lei de Diretrizes e Bases) incluiu a integração das pessoas com deficiência nos espaços escolares. O atendimento educacional desses alunos sofreu modificações, resultantes da luta pela efetivação de seus direitos enquanto cidadãos e, principalmente, pelo processo de democratização da educação, sendo este fundamentado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Entretanto, a LDB trazia o termo “excepcionais” para se referir às pessoas com deficiência, além de não prever uma escola plural/inclusiva.
 
Outro dos mais importantes marcos educacionais brasileiros é a Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”. A carta magna no Art. 205 estabelece que “[a] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E no Art. 208, ela garante que o Estado deve garantir “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente* na rede regular de ensino”. Internacionalmente, o Brasil tornou-se signatário da Declaração de Salamanca (Espanha, 1994), da Convenção da Guatemala (1999) e da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, 2007), que contribuíram, anos mais tarde, para o desenvolvimento da educação inclusiva no país. 
 
Em 1996, a LDB, Lei nº 9.394/96, direciona a inclusão dos estudantes com deficiência para as turmas regulares de ensino, independentemente das suas especificidades, sejam elas sensoriais, físicas/locomotoras, intelectuais, múltiplas e, também, em relação às altas habilidades. Dessa forma, a matrícula de estudantes com deficiência na rede regular de ensino cresceu, e as redes públicas têm se organizado para a promoção da inclusão desses estudantes. Assim, as antigas escolas especiais passam a assumir outras configurações, como, por exemplo, a oferta de formação profissional, de atividades culturais ou artísticas e de atividades vinculadas à chamada “Educação ao Longo da Vida'', principalmente nos municípios interioranos. 
 
Maria Teresa Eglér Mantoan, coordenadora e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED), salienta a fragilidade da inclusão escolar no Brasil em decorrência da falta de um projeto educacional de Estado. “Possuímos cada vez menos projetos de Estado, é sempre de governos e por isso não tem continuidade”, afirma. Nesse sentido, a pesquisadora defende que as ações de acessibilidade e inclusão sejam permanentes nas redes de ensino, não dependendo da vontade de iniciativa de cada governo. 
 
Divisor de águas 
 
Em 2008, ocorre o principal marco para a educação das pessoas com deficiência. A aprovação e a implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPI), através do Decreto n.º 7.611/08, é observado como grande marco divisório. A nova Política Nacional deslocou, assim como a Convenção Internacional de 2007, o foco das necessidades para o meio. A concepção da deficiência na relação com o meio fez com que os ambientes se tornassem mais acessíveis, para minimizar os prejuízos que um contexto despreparado pode trazer às pessoas com deficiência. Fala-se agora de um atendimento educacional especializado, para lidar com as barreiras pedagógicas; de uma educação inclusiva, para romper as barreiras atitudinais; e de uma acessibilidade, em relação às barreiras arquitetônicas. 
 
Além disso, segundo Bernadete Quirino Duarte Blaes, Diretora de Educação Inclusiva e Diversidade Étnico Racial da Rede Municipal de Belo Horizonte, a educação especial deixa de ser considerada uma modalidade de ensino e passa a ser compreendida na transversalidade. Isso faz com que o financiamento, advindo do FUNDEB**, na educação inclusiva seja alterado. De acordo com Bernadete, a matrícula dos estudantes com deficiência é considerada dupla, uma relacionada ao ensino comum/regular e a outra no Atendimento Educacional Especializado (AEE), que ocorre no contraturno e de maneira individualizada. 
 
O AEE muitas vezes é compreendido como um reforço escolar, ou seja, a professora do ensino regular não consegue ensinar a criança e é necessário um trabalho especializado. Essa é uma concepção errônea, segundo Nildete Maria Gomes, professora da Rede Municipal de Belo Horizonte e integrante da equipe de Apoio à Inclusão. “O Atendimento Especializado é suplementar ao ensino da sala de aula, o profissional do AEE busca estratégias e mecanismos que possam auxiliar e facilitar a compreensão da criança, por isso, deve ser realizado nas salas multifuncionais onde encontram-se os recursos capazes de ajudar a identificar o que é necessário para que criança aprenda”, esclarece a professora.
 
É a partir dessa nova concepção que começamos a ter realmente uma “Educação Inclusiva'', porque, até 2008, “ficamos muito na ideia de integração, em que os estudantes com deficiência estão nas escolas comuns e alguns conseguem o acesso, com um atendimento ainda aquém do que era necessário para pleno desenvolvimento deles. A PNEEPI foi um real avanço. Assim, esses estudantes começam a chegar em maiores quantidades nas escolas e percebemos um movimento maior na busca pela formação de professores com relação à educação inclusiva”, afirma Nildete.
 
Bernadete Quirino reforça que o PNEEPI é o grande responsável pelo aumento no número de matrículas dos estudantes com deficiência nas escolas regulares. Entre 2009 e 2019, observamos um crescente e progressivo aumento. Segundo dados do INEP/MEC, em 2020, 1.308.900 estudantes estavam matriculados em escolas, e 88% desse total encontrava-se em escolas regulares, onde há inclusão e diversidade entre os alunos. 
 
Somado a essas conquistas, em 2015 o Brasil promulgou a Lei n.º 13.146/15, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Sua premissa básica é considerar que as pessoas com deficiência não são tecnicamente incapazes de realizar funções básicas no contexto social, explicitando que as especificidades das deficiências não podem afetar a plena capacidade civil dos indivíduos, principalmente no que tange à formação educacional. É um direito inalienável que todo sujeito, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer condição, física e intelectual, pode atingir o máximo de suas capacidades artísticas e sociais. 
 
A luta pela educação das pessoas com deficiência ainda não acabou, como reforça Nildete: “eu sonho que um dia a gente discuta menos acerca da inclusão, porque essas pessoas estarão incluídas nas escolas, na sociedade, isso leva tempo para ser construído, e não vamos desistir agora.” Esse sonho assemelha-se muito ao de Bernadete, que afirma: “ainda vou continuar usando o termo ‘escola inclusiva’, ‘educação inclusiva’, mas eu não quero mais ter que usar, porque eu não posso considerar como escola, uma escola que não seja inclusiva.”
 
 
*A palavra preferencialmente foi motivo de celeuma durante anos. Contudo, após a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, não há brecha para pais escolherem se querem ou não matricular a seu(sua) filho(a) na rede regular, é um dever.
 
**O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, em 2020, tornou-se permanente e com o crescimento progressivo para financiar a educação pública brasileira.