A escola em disputa
O debate sobre uma ‘escola sem partido’ traz à tona reflexões sobre o papel da instituição escolar no século 21 – e as disputas em torno dessa definição
Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 15:25:00
Por Natália Vieira
Criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o Escola Sem Partido (ESP) é um movimento que, segundo explicações em seu site, se opõe à “contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”, defendendo que os professores busquem alcançar o ideal da neutralidade. De 2014 para cá, o movimento ganhou força, e já conta com Projetos de Lei (PL) em andamento em vários estados e no Congresso para a inclusão do “Programa Escola Sem Partido” entre as diretrizes e bases da educação nacional.
Em oposição ao ESP, além de atos de professores e estudantes em vários estados, foi criada a página online “Professores contra o Escola Sem Partido” para mobilização contra esses projetos de lei. Esse cenário de polarização vem suscitando novos questionamentos e disputas sobre a função das escolas no país, e conceitos como neutralidade, ideologia, doutrinação e censura aparecem nos discursos dos dois lados – pelo menos os lados mais visíveis.
Ideologia da neutralidade
A defesa de uma busca por neutralidade é um dos pontos que tem gerado grande discussão. A professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Renata Aspis defende, no entanto, que não é possível existir neutralidade na produção e troca de conhecimento: “É sempre um sujeito humano que está atrás de um levantamento de uma hipótese, da verificação de uma lei. Quer dizer, sempre existe o olhar humano que constrói a realidade”, afirma. Para ela, o que é possível é ser democrático. “Você pode abrir [espaço] para vários pontos de vista serem colocados e, nesse agenciamento, buscando equacionamento disso, você chega mais próximo de uma neutralidade. Então, seria uma neutralidade muito mais por saturação, do que por isenção”, explica.
Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Anita Handfas, a defesa de neutralidade do ESP na verdade disfarça uma forma de doutrinação ideológica. “[É] transformar a escola, que tem que ser um espaço de diálogo, troca, respeito e solidariedade entre seus membros, em um espaço de vigilância. Eu agora, como estudante, vou ser vigilante o tempo todo com relação ao professor”.
No texto do PL nº 193, de 2016, que tramita no Senado, é argumentado que é “fato notório” que professores vêm se utilizando das aulas para tentar convencer os alunos a aderirem a “determinadas correntes políticas e ideológicas” que os conduzam a adotar padrões de julgamento e conduta moral – “especialmente moral sexual” – incompatíveis com os ensinados pelos pais ou responsáveis. Por isso, o projeto defende que é “urgente” adotar medidas para prevenir a “prática de doutrinação política e ideológica nas escolas”.
No entanto, educadores também defendem constantemente que a escola não é espaço de doutrinação. “Em termos ideais, a educação seria o fomento, o desenvolvimento, a potencialização do aprendizado do aluno. E a doutrinação é uma limitação, é você mostrar apenas um caminho e obrigar aquele aluno a acreditar que aquele é o caminho verdadeiro”, defende Renata.
Para muitos críticos, a proposta do ESP vai exatamente no sentido de criar esse ‘caminho verdadeiro e único’, promovendo a doutrinação que alega combater. Nesse sentido, o professor da Faculdade de Educação da UFMG Luciano Mendes argumenta que o movimento se encontra fortemente com as perspectivas da educação doméstica. “Na impossibilidade de implantar a educação doméstica para esses grupos no Brasil, também se investe contra a própria escola que existe”, explica. “E aí é do meu umbigo que eu estou falando, porque é a forma de dizer que o que interessa sobre as coisas é aquilo que eu considero: o bom senso é o meu senso, o bom gosto é o meu gosto, a boa escola é a minha escola, o sem partido é o meu partido”, completa Luciano.
O papel da escola
O debate sobre o ESP evidenciou várias disputas e incertezas sobre qual é o lugar que a escola brasileira ocupa (e deve ocupar) atualmente. Na visão de Luciano Mendes, é no encontro de perspectivas” que se faz uma escola pública de qualidade. A professora Anita Handfas acredita, no entanto, que ainda estamos longe de ter uma situação em que a escola “possa realmente estar dialogando o tempo todo com a comunidade externa, no sentido de, enfim, pensar coletivamente todas as questões relacionadas à formação do jovem”. A educadora aponta que os problemas na gestão escolar têm chamado a atenção inclusive dos alunos, usando como exemplo as reivindicações dos estudantes que vêm organizando movimentos de ocupação em várias escolas públicas pelo país e a eleição direta para direção. “Eles querem uma escola na qual eles também possam ter uma voz mais ativa, onde essa hierarquia que existe na escola hoje de alguma forma seja reorganizada”, afirma.
A professora Renata Aspis também chama a atenção para a falta de diálogo do Estado com os professores. “Há pouquíssimo tempo, os professores do Paraná saíram na rua para reivindicar, e não era só uma questão de salário, [reivindicavam] condições de trabalho e da própria escola, e a polícia foi colocada na rua para dar tiro de borracha”, exemplifica. “Enquanto o Estado estiver colocando a polícia armada para ‘resolver’ o conflito, que é o conflito da própria situação na qual a escola se encontra - de precariedade absoluta -, não tem o que dialogar, se o diálogo é feito com bala, polícia e porrada”, provoca.