A história de um leitor compõe-se de muitas vozes

Crônica da edição 53 do Letra A


     

Letra A • Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 16:36:00

 
Marta Passos Pinheiro
 
Todo leitor tem uma história. Em algum momento, houve o chamado para que ele entrasse no mundo codificado das representações alfabéticas. Em algum momento, houve o desejo, o parto e o nascimento. Um leitor não nasce sozinho, mesmo os que acreditam que sim. De sua história fazem parte muitas vidas, e a estrada, infinita, se faz ao caminhar.
 
Pensamos sempre na mãe dedicada que todas as noites se debruça na cabeceira do filho com um livro na mão. Mas não é apenas por essa mãe que a história é formada. Grande semeadora é a mãe que, na correria do dia a dia, ou nas noites possíveis, conta pro filho as histórias que ouviu em sua infância e canta as músicas que aprendeu quando criança. Mãe que pode ser pai, avó, avô…
 
Precisei perder meu pai, já adulta, pra lembrar que foi ele o primeiro semeador da minha história de leitora. Gaúcho típico e amante das trovas de sua terra, era ele que fazia o convite para a brincadeira: “Vamos trovar, Martinha?” Como separar a escrita da oralidade? Como não enxergar a ancestralidade das poesias e histórias que circulam na tradição oral? É essa “brincadeira com as palavras” e a memória do afeto que busco nos livros que preenchem minha vida e minha biblioteca. 
 
A ponte entre oralidade e escrita é feita pela professora alfabetizadora (que pode ser professor), semeadora do desejo e, na maioria das vezes, a responsável pelo parto do leitor. É ela que lhe mostra a chave para a decodificação do mundo da escrita, ensinando a relação entre som e palavra. Semear o desejo pela leitura, ajudar no parto, nutrir e ver o crescimento do leitor: missão dessa grande mestra. É com muito carinho e saudade que me lembro de minha primeira professora levando minha turma para a biblioteca da escola pública onde eu estudava. Lembro-me das prateleiras de metal, do sentimento de imensidão e do desejo de conhecer o “universo” que me arrebatava. “O UNIVERSO (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias...”, assim Borges inicia seu conto “A Biblioteca de Babel”. A biblioteca (que eu chamo de universo) compõe-se de um número infinito de vozes a serem lidas e ouvidas. Esse universo de minha escola, aparentemente tão pequeno, as queridas professoras e bibliotecárias que contavam histórias em dias chuvosos foram semeadoras e parteiras de minha história de leitora.
 
Coração da escola, a biblioteca se estende pelo pátio e pelas salas de aula, espalhando seus livros e suas histórias – memória de nossa humanidade. Coração da cidade, a biblioteca se estende por becos e vilas, esquinas e praças, com o desejo de compartilhar “o saber”, formar leitores de livros e de mundo: bibliotecas comunitárias. Em Belo Horizonte, vimos o nascimento de uma, construída com papelão e tábuas por moradores de rua, no cruzamento entre duas avenidas. “Casa do saber” - o nome que recebeu de seus pais-, apesar de incendiada, renasceu das cinzas, Fênix de nossa cidade. Em Sabará, ganhou destaque a Borrachalioteca, que, nascida em uma borracharia, se tornou um importante espaço cultural da comunidade.
 
E quantas vidas fazem parte de uma biblioteca! Vozes de autores, personagens, leitores… Os inquisidores também existem, como na Biblioteca de Babel, folheando livros “à procura de palavras infames”. Da minha memória também faz parte um período em que não vivi, no qual pessoas eram presas, perseguidas, torturadas devido aos livros que possuíam. Uma sociedade que viveu ameaçada pela censura e queima de livros está muito viva em minha memória, como a que encontramos na obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), ficção científica adaptada para o cinema em 1966, dirigida por François Truffaut. Dessa obra, guardo uma imagem da resistência: os homens-livro que decoravam as histórias para mantê-las vivas. 
 
A destruição de bibliotecas e de livros deveria ser considerada crime inafiançável. Trata-se de assassinato da memória de um povo, de nosso passado e, por que não, de nosso futuro. Neles está a semente do vir-a-ser ou, quem sabe, de um livro mágico com uma espécie de profecia do futuro da humanidade. Mas são muitas as formas de resistência e de “reexistência” - é com muita esperança que vemos nossa cidade repleta de poetas marginais e de contadores de histórias. 
 
Pais, professores, bibliotecários, bibliotecas, autores, editores, poetas marginais, contadores de histórias: muitas vidas fazem parte da história de um leitor que, para continuar sua caminhada, precisa seguir firme, resistindo e “reexistindo”, sem perder o desejo de ler: os livros e o mundo.