A literatura infantojuvenil e seus vários espaços
Editorial do Jornal Letra A 45
Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 15:56:00
As práticas de leitura estão muitas vezes associadas ao livro como objeto privilegiado de usos socialmente legitimados, tanto que uma pergunta trivial como "o que você está lendo?" remete preferencialmente a uma indagação sobre títulos de livros e sobre literatura. Nos últimos anos, especialmente no contexto escolar, houve um grande avanço no reconhecimento de outros suportes e outras esferas discursivas como instâncias de ensino da cultura escrita que cotidianamente circula de diversas formas e com diferentes intensidades. Talvez em alguns momentos dessa desejável ampliação dos usos escolares da leitura e da escrita, tenha ocorrido uma imposição de uma visão utilitarista da escrita, exemplificada pela presença hegemônica de textos reconhecíveis pelo seu "valor de mercado", o que trouxe mais visibilidade para textos de natureza propagandística ou jornalística.
Nesse contexto de escolha de textos e de suportes da escrita, pode ser que o livro e a literatura acabem sendo deslocados como uma atividade de complementação extraescolar e como uma iniciativa que tem um caráter de absoluta escolha individual, movida por um gosto pela leitura que se manifesta em alguns poucos. Assim, de uma forma indireta, pode ter ocorrido uma improdutiva hierarquização funcional dos textos, o que justifica uma reflexão permanente sobre os lugares que o discurso literário tem ocupado nas práticas escolares de leitura e de escrita, em diferentes segmentos. Essa reflexão não significa fomentar uma disputa por um reposicionamento da literatura infantojuvenil no contexto escolar, mas indica uma necessidade de explicitação das potencialidades da leitura literária, aí incluídas as discussões sobre as políticas públicas de acesso ao livro e sobre as expectativas em relação à formação de leitores em uma cultura escrita que se apresenta no plural.
Esse número especial do jornal Letra A destaca os lugares da literatura na formação dos leitores, ressaltando a potencialidade do discurso literário em várias dimensões. Há um reconhecimento de que o estatuto da literatura infantojuvenil vai sendo alterado à medida que as obras vão ampliando sua linguagem, quer pela constituição de novos temas, quer pelo diálogo entre recursos verbais e imagéticos. Assim, os jogos de linguagem presentes nos textos dessa natureza tendem a favorecer leituras mais multimodais que ampliam as possibilidades de sentido e também estimulam as explorações linguísticas presentes na sonoridade das palavras, nas construções frasais, na elaboração de enredos e, especialmente, nos recursos metafóricos que abrem certas interpretações do mundo de uma forma mais autoral, instituindo subjetividades que vão exigir uma interação marcada não somente pela busca de informação, mas principalmente pela proposta estética de apresentar e interpretar o mundo de maneira peculiar. Isso não significa desconsiderar uma dimensão política e ideológica presente nas obras literárias, o que acrescenta uma capacidade inferencial do leitor de reinterpretar os mundos contruídos nesse discurso a partir de sentidos múltiplos e, em alguns casos, conflitantes. Por essa razão, uma das funções do processo de escolarização é a ampliação de repertórios que referenciem diferentes culturas e que estimulem a construção de variados pontos de vista sobre o mundo.
Há, portanto, vários espaços para diálogos entre narrativas orais e escritas, entre a recitação e a leitura silenciosa, entre a literatura canônica e a literatura de inovação, entre os livros impressos e os digitais. Enfim, esses diálogos podem e devem ocorrer em várias frentes se o efeito literário também estiver em foco no processo de produção de sentidos. No contexto escolar, o espaço do livro literário precisa estar assegurado como um direito de herança cultural a ser legado a nossos alunos, assim como a leitura literária precisa ser constituída como uma ação interpretativa a ser desenvolvida em prol de uma visão mais múltipla do mundo. Mesmo sabendo da fluidez dos sentidos a serem produzidos, a experiência da leitura literária deve estar presente no contexto escolar exatamente porque transborda o senso utilitarista e permite certos entendimentos sobre a complexidade da criação humana. O desejo é sempre que o leitor em formação se aproxime de um leitor em ação; eis o desafio da escola.