A literatura que vem das ilhas

País de independência recente, Cabo Verde experimenta na literatura os efeitos da emancipação política, o que inclui uma maior diversidade de vozes e temas


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 13:39:00

 

Por Luiza Rocha*

“O Blimundo é um boi forte, negro, bonito, que trabalha para o nhô rei e consegue todas as riquezas do nhô rei. Mas ele vive preso e um dia resolve arrebentar as correntes e fugir pelos montes e vales. Essa é uma das histórias tradicionais cabo-verdianas, que é muito bonita e que influencia também a nossa escrita. Nós somos ilhas. Sabemos que as ilhas com as montanhas, a escuridão da noite, as sombras que projetam têm muito essa coisa de fazer crescer esse imaginário, onde se projetam figuras fantasmagóricas, as feiticeiras, as bruxas, as bruxarias...”
 
A fala é da escritora cabo-verdiana Vera Duarte, que viu seu país arrebentar as correntes da colonização e se tornar uma república independente no ano de 1975. A história do Blimundo é um conto oral tradicional do país, que, segundo Vera, infelizmente ainda não possui uma produção muito significativa na literatura infantil, o que pode mudar com a nova geração de escritores. A própria Vera diz que, na sua infância, crianças não eram incentivadas a ler e nem as pessoas a escrever, o que fazia com que a escritora, por exemplo, rasgasse poemas que costumava redigir quando pequena. Apesar da falta de incentivo, Vera era exceção, já que sua família cultivava o hábito da leitura, e continuou repassando-o para as próximas gerações.
 
O consumo de literatura estrangeira, nesse passado pré-independência, também era o mais comum. O poeta cabo-verdiano Oswaldo Osório, por exemplo, relembra os navios brasileiros que ancoravam em Cabo Verde para reabastecer e, nesse entretempo, deixavam livros e revistas da época, inclusive brasileiras, como Manchete e Cruzeiro: “Da Manchete, lembro de Paulo Mendes Campos, que era um cronista maravilhoso de Minas Gerais. Eu tenho um livro dele, um livro belíssimo. Então, muitos desses livros eram deixados em terra”, conta o escritor, hoje com 80 anos.
 
Antes da independência, a literatura era muito restrita a grupos de maior poder aquisitivo e com mais escolaridade. Com a proclamação da independência, uma das maiores conquistas, segundo Vera, foi o acesso universal à escola, o que fez com que crianças que não tinham contato com livros em casa pudessem tê-lo nas salas de aula. Além disso, hoje existe o maior incentivo à escrita e à leitura de produções cabo-verdianas. Para Vera, isso demonstra uma evolução e que o país está caminhando para um lugar melhor, no que diz respeito à literatura, mesmo que lentamente.
 

O período claridoso

 
Apesar de pouco difundida por muito tempo, a literatura cabo-verdiana não é tão jovem, visto que, a partir do século XVI, já é possível identificar produções escritas no país. Um dos períodos mais expressivos nesse âmbito foi o claridoso, com a criação da Revista Claridade. Ela representou um ponto de virada para as produções literárias nacionais. Seus maiores representantes foram: Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Antonio Aurélio Gonçalves, Teixeira de Souza e Gabriel Mariano. Desde então, mais revistas com textos de autores do próprio país começaram a surgir até chegar às produções contemporâneas.
 
Para Oswaldo, autores de épocas passadas influenciam novas produções; porém o movimento natural é de renovação e adequação ao momento em que se está inserido: “Para mim, literatura é a reprodução das tensões sociais, que transporta todos os sonhos e inspirações, e até tristezas e alegrias, de uma sociedade. Mas também tem o aspecto de criatividade, a identidade nacional reforça-se e renova-se cada vez mais, com o avanço das literaturas. O primeiro grande movimento literário de Cabo Verde, a Claridade, por exemplo, é um marco da história da literatura cabo-verdiana, mas vai beber nos literatos anteriores aos autores da Claridade. Assim como a literatura da Claridade não se compara hoje com os novos autores, porque a identidade se renova, as preocupações temáticas são outras, as principais relações eram a chuva, a fauna, a seca, a imigração. Hoje os problemas são outros”, declara. “Portanto, o que eu digo: à literatura também cabe essa preocupação identitária que se renova.”
 
Outro marco foi a criação da Academia Cabo-Verdiana de Letras, em 2013, fundada pelo escritor Corsino Fortes. A instituição foi oficialmente fundada no dia 25 de setembro de 2013, com 40 cadeiras e seus imortais. A escritora Vera Duarte foi uma das primeiras a ser convidada pelo fundador e juntamente com outros 3 escritores – Fátima Bettencourt, Filinto Elísio e Danny Spínola – organizou todos os processos da Academia até a sua fundação efetiva: “A gente dizia e dizemos, que o que nós queremos é valorizar o passado; nós temos um passado literário muito bom; dignificar o presente; que os escritores possam dar o seu contributo para essa nação cabo-verdiana, para aumentá-la dessas suas fronteiras tão reduzidas que ela tem; e enriquecer o futuro, incentivar os mais jovens, aumentar, sobretudo, o edifício literário cabo-verdiano.”
 

A mulher na literatura cabo-verdiana 

 
Se a democratização da literatura em Cabo Verde já foi uma grande conquista – que ainda está se concretizando – a presença e o reconhecimento da mulher como escritora é uma luta à parte e ainda mais árdua. No período claridoso, por exemplo, apenas uma mulher, Yolanda Morazzo, teve um soneto publicado na última edição da Revista Claridade. E as mulheres já estavam presentes na literatura há algum tempo. Vera afirma que a escritora Antónia Pusich, por exemplo, foi a primeira pessoa nascida em Cabo Verde a publicar um Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, que continuou sendo publicado por anos e foi veículo para obras de muitos escritores.
 
Para a escritora Fátima Bettencourt, o movimento para o reconhecimento de escritoras cabo-verdianas está só começando: “E a nossa luta está muito no início, porque vejo, por exemplo, na Universidade de São Paulo, estuda-se muito a literatura cabo-verdiana. Há muita gente lá que escolhe escritoras cabo-verdianas para fazerem teses de doutoramento, para fazerem dissertações de mestrado, estão a toda hora a fazer isso. Mas aqui, muito pouco, muito pouca gente estuda a literatura feita por uma mulher, muito pouca gente faz isso. Então ainda é preciso ir fora para se encontrar esse brilho, para vir trazer então para dentro.” 
 
O aumento do número de escritoras mulheres é um dos principais pontos que ainda devem se desenvolver na literatura cabo-verdiana. Isso aos poucos vem acontecendo: a autora Vera Duarte, por exemplo, fez parte da produção do livro "Cabo Verde: 100 poemas", que foi publicado em 2016 e conta com 54 autores – dentre eles, 7 são mulheres. Nas palavras da própria Vera, isso ainda é pouco, mas já é bem mais do que se tinha em anos anteriores. Sobre esse cenário, Fátima Bettencourt diz que ainda hoje existem “muitas mulheres que escrevem poesia belíssima, que não publicam, têm medo”: “Eu já até disse numa nota do meu livro que eu estou a declarar guerra às gavetas. Eu já vi o horror que é ter gavetas abarrotadas, perdi o medo, então eu quero que todos percam”.
 
*As entrevistas com Oswaldo Osório e Fátima Bettencourt e uma das entrevistas com Vera Duarte foram realizadas pela professora da FaE/UFMG Miria Gomes.