A neurociência explica os processos de alfabetização?
Troca de Ideias | Letra A 53
Letra A • Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 16:27:00
Luciana Mendonça Alves - Professora Adjunta do Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Fonoaudiológicas da UFMG.
A aprendizagem da leitura e da escrita, diferente da linguagem oral - que é aprendida naturalmente -, demanda instrução educacional direcionada. Isso porque a escrita é uma tecnologia desenvolvida pelo homem, e o nosso cérebro não é originalmente programado para processar essa forma de linguagem. No entanto, o cérebro, pelo mecanismo de plasticidade neuronal, se adapta e se modifica para que as áreas biologicamente programadas para outras tarefas se adaptem ao processamento da linguagem escrita.
Estudos recentes têm evidenciado o neurodesenvolvimento como um processo maturacional interativo, influenciado tanto por fatores individuais (biológicos) quanto ambientais. Assim, o ambiente (escolar /familiar) é essencial para a neuromaturação e o desenvolvimento da aprendizagem das crianças. Da mesma forma, o próprio processo de neurodesenvolvimento e maturação da criança impulsiona a sua aprendizagem nos ambientes.
A neurociência tem, cada vez mais, explicado os processos de alfabetização com evidências cientificamente fundamentadas. Os estudos extrapolam os processos neurobiológicos e alcançam a importância da interação e contribuição mútua entre os aspectos neurobiológicos e ambientais / socioemocionais, além das diversas possibilidades adaptativas de aprendizagem em casos de dificuldades nesses aspectos.
As novas tecnologias de detecção do funcionamento do sistema nervoso têm permitido vasta exploração neste campo. As pesquisas da última década do pesquisador francês Stanislas Dehaene, por exemplo, têm evidenciado que há uma área específica do cérebro, situada na região occipitotemporal ventral do hemisfério dominante, que processa as habilidades visuais e auditivas, de forma a promover a leitura. Tal área se especializa, desenvolve e se modifica após a alfabetização, mas, antes de se aprender a ler, destina-se à habilidade de reconhecimento de faces e objetos – fenômeno que o pesquisador chama de reciclagem neuronal. Assim, mais do que métodos, é importante que as discussões em educação e as políticas públicas direcionadas a esse campo levem em consideração as contribuições dos avanços neurocientíficos para as escolhas acertadas quanto aos procedimentos, processos e ações direcionadas à aprendizagem da tecnologia mais importante já inventada: a leitura! Então, sim! Cada vez mais, a neurociência traz importantes contribuições para os estudos dos processos de alfabetização.
Rosângela Gabriel - Professora e pesquisadora do curso de graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Nas últimas décadas, as neurociências avançaram muito no sentido de compreender o cérebro humano e como ele adquire e processa a linguagem e a leitura, constituindo um conjunto robusto de pesquisas denominado ciência da leitura. Muitos dos conhecimentos hoje disponíveis aos estudiosos e pesquisadores se opõem ao senso comum ou mesmo àquilo que temos consciência enquanto leitores experientes. Dadas as dimensões desta coluna, vou me deter em apenas três pontos: visão, decodificação, compreensão.
Abraham Lincoln afirmou que a “escrita – a arte de comunicar pensamentos para a mente por meio dos olhos – é a maior invenção da humanidade”. A escrita pode ser considerada a maior invenção da humanidade, pois permite que os conhecimentos sobrevivam aos seus criadores e possam dar origem a novos conhecimentos. Mas a frase de Lincoln chama a atenção para outro aspecto importante da leitura: o papel dos olhos.
Nossos olhos têm um papel fundamental no processamento da leitura e as redes corticais que propagam a informação visual passam por uma espécie de reciclagem durante a aprendizagem da leitura: parte dos neurônios dedicados inicialmente ao processamento visual é deslocado para uma região mais à esquerda do córtex visual e passa a se especializar no processamento dos caracteres utilizados por um determinado sistema de escrita, no nosso caso, o alfabético. Esse deslocamento à esquerda é estratégico, porque esses neurônios especializados na leitura serão conectados às regiões de processamento fonológico e semântico da linguagem, também localizadas predominantemente no hemisfério esquerdo do cérebro.
Em escritas alfabéticas, como o português, letras representam fonemas (sons que marcam distinção em uma língua). Portanto, para ler, é condição indispensável associar a palavra escrita (sequência de letras) a seu significante sonoro (pronúncia da palavra/imagem acústica), a fim de ativar o significado necessário à compreensão de palavras, expressões, textos.
Por outro lado, a amplitude do conhecimento linguístico, seja ele em sua forma oral ou escrita (conhecimento das palavras, das expressões, das construções sintáticas...), juntamente com a fluência na transformação de sinais gráficos em informação linguística serão determinantes na compreensão leitora.
Assim, podemos dizer que as neurociências explicam muitos processos subjacentes à alfabetização. Entretanto, a busca do conhecimento é um processo dinâmico, em que novos conhecimentos geram novas perguntas, fazendo avançar o que sabemos em uma determinada área.