A PNA contempla a realidade da alfabetização no Brasil? | parte 2


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Agosto de 2020, 16:36:00

 
Conflitos de abordagens e terminologias
 
Um dos pontos mais discutidos sobre a proposta da PNA tem sido o destaque dado aos métodos fônicos. Enquanto o MEC defende que focar nas relações entre os grafemas e os fonemas é a melhor forma de garantir que a criança seja alfabetizada, pesquisadores da área da alfabetização reforçam que a discussão sobre abordagens e métodos já foi superada, não excluindo a abordagem fônica do que deve ser trabalhado com os alfabetizandos.
 
Na entrevista ao MEC, Renan Sargiani aponta que existem vários métodos fundamentados na abordagem fônica, defendendo que não existe apenas um método fônico. “Abordagens são proposições teóricas mais abrangentes que permitem a formulação de diferentes métodos. A abordagem fônica trata do conjunto de recomendações para a alfabetização que priorizam o ensino sistemático das relações entre fonemas e grafemas.” Renan acredita que a “instrução fônica sistemática” oferece as melhores condições para a alfabetização das crianças, “especialmente aquelas que estão em situação de vulnerabilidade social e que precisam do ensino explícito das relações entre letras e sons para avançarem mais rapidamente no processo de alfabetização.”
 
O ex-coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística do MEC também afirma, no entanto, que um bom programa de alfabetização precisa incluir diferentes componentes e práticas, citando, além da instrução fônica sistemática, a consciência fonêmica, a fluência de leitura oral, o ensino de vocabulário e a compreensão de textos. Apesar disso, Renan frisa que vários relatórios e estudos apontam para uma maior eficiência da abordagem fônica em comparação à abordagem global. “A abordagem global privilegia os contextos significativos, usando, desde o começo, textos longos que são úteis para o desenvolvimento da oralidade, mas que não explicitam as relações entre letras e sons, sendo eficientes apenas para aquelas crianças que já possuem ampla experiência com materiais de leitura, que conhecem as letras e os sons porque aprenderam em casa ou em outros ambientes”, argumenta. Ele afirma, ainda, que no Brasil nunca foi adotada oficialmente a abordagem fônica, que, segundo ele, é mais desenvolvida a partir dos anos 1980, e que os métodos fônicos antigos eram baseados nas abordagens alfabética e silábica.
 
Para o professor Artur Morais, há hoje um crescimento de protagonismo dos modelos “conexionistas” na psicologia cognitiva, que, segundo ele, pensam que as crianças são alfabetizadas recebendo informações prontas passivamente. “É uma volta às teorias de aprendizagem de tipo empirista ou associacionista, das quais o behaviorismo de Skinner é um bom exemplo. Eu digo que essas falsas novidades são um behaviorismo travestido. Um behaviorismo em que a repetição levaria o aluno a aprender as respostas certas.” O professor da UFPE afirma que esses psicólogos conexionistas e os neurocientistas propõem um ensino transmissivo igual para todas as crianças, não levando em conta as diferenças de compreensões e saberes dos alunos. “Para a criança que ainda não compreendeu que as letras substituem pedaços sonoros pequenininhos, dentro das palavras que pronunciamos, fazer as tarefas impostas é uma tortura. Para as crianças que já compreenderam a escrita alfabética e já dominam as relações letra-som em foco, a cantilena repetida nada tem de desafiante ou motivador”, argumenta. 
 
Artur afirma que não há consenso entre psicólogos sobre a maior efetividade dos métodos fônicos. Ele menciona alguns motivos que, em sua visão, explicam por que os psicólogos de orientação conexionista e os neurocientistas privilegiam o método fônico. Para o professor da UFPE, esses pesquisadores têm uma visão associacionista e adultocêntrica sobre como as crianças aprendem a escrever, acreditando que aprendem repetindo o que o adulto lhe transmite, “sem ter que, internamente, modificar sua compreensão sobre como as letras funcionam”. Além disso, Artur acredita que esses estudiosos concebem a escrita alfabética como um “simples código”, e não “um sistema notacional com um conjunto de propriedades conceituais, que a criança precisa compreender para, aí, sim, poder memorizar suas convenções e usá-las para ler e escrever novas palavras.” O professor da UFPE também destaca que percebe “uma postura extremamente autoritária em relação ao campo da educação como um todo” por parte dos pesquisadores que consideram os especialistas da área da ciência cognitiva da leitura como “os únicos que produzem conhecimento científico legítimo”, colocando os professores em uma posição de obediência sobre o que deve ser feito em sala de aula, em sua opinião.
 
Outro conceito utilizado na PNA que levantou discussões foi o de literacia, que, segundo o caderno lançado pelo MEC, é “o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita, bem como sua prática produtiva.” Esse conceito, de acordo com a PNA, vem sendo difundido desde os anos 1980 e é um fator importante para que as políticas públicas garantam o que chamam de “exercício pleno da cidadania”. A escolha do termo se deve, afirma a PNA, a uma busca de “alinhar-se à terminologia científica consolidada internacionalmente”, pois em Portugal se usa “literacia”, que é equivalente a literacy do inglês e a littératie do francês.
 
A escolha do termo literacia tem sido questionada por muitos pesquisadores porque no Brasil há, na área da alfabetização, a consolidação do uso do termo letramento para explicar as práticas sociais da língua escrita. Para a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Maria Silvia Martins, essa mudança é uma tentativa de apagar um viés crítico e social que a palavra letramento tem. Maria Silvia explica que o termo letramento começa a ser utilizado no Brasil em 1986, traduzido do termo literacy, que, segundo a professora, também tem um viés crítico e social forte. A abordagem do letramento no exterior foi desenvolvida principalmente pelos pesquisadores James Gee, americano, e Brian Street, britânico. “O Street teve uma longa pesquisa no Irã, e ele trouxe de lá esses insights [sacadas] para mostrar que as pessoas utilizam a linguagem em íntima relação com seus afazeres cotidianos, porque a linguagem tem esse viés de uma prática social”, explica.
 
Maria Silvia destaca também a influência de Paulo Freire para os estudos sobre a dimensão social da leitura e da escrita, lembrando que, nos anos 1970, o educador e filósofo brasileiro abordou a questão. “Ele [Paulo Freire] é uns 10 anos anterior a isso, então não utiliza esse termo, letramento. Mas se você vai lá em “Educação como prática da liberdade” ou em “Pedagogia do oprimido”, que é altamente conhecido e referenciado no exterior, você vai ver que o Paulo Freire defende que você ensine os adultos em íntima relação com sua realidade social, por isso que ele fala em educação como processo de conscientização. Você percebe como tem uma ligação forte com essa abordagem de letramento que trouxemos do exterior.” 
 
Para a professora da UFSCar, também há uma vontade de apagar o uso do termo letramento no intuito de afirmar que, “agora sim”, o conceito utilizado tem fundamento científico. “O que é uma mentira dizer que nós não temos uma abordagem cientificamente fundada. Tudo o que a gente construiu nos últimos 50 anos foi uma trajetória histórica longa, em que, aos poucos, fomos construindo essa maneira de ver o mundo, que é cientificamente fundada e que dialoga com pesquisadores do exterior também, pesquisadores da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos”, defende.
 
 

Continue lendo:

Parte 3 - Resultados que não revelam toda a história

Parte 4 - Protagonismo e valorização dos professores

Parte 1 - A PNA contempla a realidade da alfabetização no Brasil?