Abaixo o frasismo!
Crônica | Letra A 54
Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 16:04:00
Por Vicente Cardoso Jr.
“Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer: – E daí? Eu adoro voar!”. Há alguns anos, um amigo seu postou no Facebook esse texto ao lado de uma foto da Clarice Lispector, e você até achou estranho, mas deixou pra lá. E agora não aguenta mais as batalhas travadas no grupo da família no Whats, para dizer que não, cunhado, segurar a respiração não serve para se autodiagnosticar com Covid, e é claro que não, prima, a filha do presidente da Rússia não morreu após tomar vacina, e também é mentira isso aí, tio, é mentira que vários países já sabiam do vírus em 2017, e que... Ufa!!! Pois é...
Tudo começou a desandar quando negligenciamos as citações falsas. Clarice deve ser a favorita dos falsificadores. Bem juntinho dela está Einstein, coitado, transformado numa espécie de coach, com umas frases motivacionais nada relacionadas a seu legado para a Ciência. Ah, e qualquer breve ensinamento de um político gringo já falecido dá um sentido profundo de explicação às coisas, né? Então tudo bem se eu disser que o Churchill disse algo hoje, e amanhã quem disse foi, vamos ver, o Abraham Lincoln! “Fascismo? Isso eu como com cereal de manhã!” Que tal? Mando bem inventando citações?
Aliás, quando surgiu esse fenômeno das fotos acompanhadas de aspas – para dizer o mínimo – suspeitas, eu ficava imaginando a cena: o sujeito se senta na frente do computador, baixa uma fotografia, vamos supor, da Cecília Meireles, reflete um pouco... olha para o teto... coça a cabeça... até que, tchã-nã!, concebe a pérola: “A escola é lugar do ensino, quem educa é a família”. Pronto, rapidinho ele salva a imagem, compartilha em algumas redes e se levanta para fazer um misto-quente, sem um pingo de culpa na consciência.
Temos que enfrentar o frasismo! E a primeira postura antifrasista é começar a desconfiar dessas aspas soltas no mundo, da facilidade com que a gente acha que elas explicam muita coisa. O grande mal do frasismo é que, uma vez que ele entra em nossas vidas, contamina nossa forma de ler quase tudo. Já se flagrou falando sobre uma notícia da qual você só tinha lido o título? Pois eu já! E, mesmo que eu me policie para evitar isso, às vezes acontece, mas tenho tentado corrigir: “desculpa, eu não cheguei a ler a notícia, só vi o título”. Ah, e sabe quem adora que a gente só leia o título? O primo daquele frasista ali de cima, o primo mais rico, o que trabalha escrevendo fake news.
O frasismo, as fake news e a própria realidade, que anda muito maluca, nos obrigam a um reposicionamento como leitores. Trocar o prazer de saber algo inédito – que a notícia (tanto a verdadeira quanto a fake) nos oferece – pelo prazer de saber algo confiável. Aprender a desconfiar, mas descobrindo a boa medida da desconfiança – porque também não precisa virar o conspiracionista que duvida de tudo!
Chega a ser óbvio, mas o que devemos fazer essencialmente como leitores é: ler. Por exemplo, ter a calma de ler uma notícia até o fim. E, então, ler o seu entorno: alguém assina ou o texto é anônimo? E que site é esse onde está publicada? Eu conheço? Além disso, se eu copio o título ou outras informações do texto e busco no Google, a notícia aparece em outros sites que eu conheça? Recomendo este breve guia da BBC, empresa pública de comunicação do Reino Unido, em seu site brasileiro, sobre como checar se uma notícia é falsa.
Outra nova atitude que aprendi: conferir a data. É que, às vezes, alguém mal-intencionado divulga uma matéria antiga, só que a chamada gerada no Facebook ou no WhatsApp não informa a data da publicação. E assim os leitores mais apressados, que só leem o título e já compartilham, ajudam a divulgar uma notícia que, num ano lá atrás, era verdadeira, mas torna-se falsa quando alguém acredita que é atual. Imagine ver, hoje, no Facebook, uma chamada para essa matéria do G1: “Brasil registra geração recorde de emprego formal”. Bacana, né? Mas totalmente desinformativa, se a gente não percebe que ela é de 2010!
Agora, se você já é um leitor antifrasista, entende facilmente a artimanha por trás de uma divulgação como essa. O mesmo vale para as fake news em geral. Cada atitude que a gente incorpore como leitor/checador de notícias, podemos ir aos poucos replicando em conversas com colegas, amigos, vizinhos e, obviamente, no conturbado grupo da família: “Ei, primo, você viu que site estranho esse? Não vi a notícia em nenhum outro site. E o texto não tem nem assinatura...”. E assim vamos, ao mesmo tempo, nos formando e formando outros leitores neste novo mundo que exige novas leituras – e, claro, ajudando a derrubar o frasismo!