Alfabetização em tristes tempos!

Editorial do Letra A 53


     

Letra A • Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 16:53:00

 
Estamos vivendo um momento de suspensão causado pela pandemia: suspensão de um modelo de escola, suspensão de expectativas, conflitos entre prioridades, como a que vivemos em alguns países de como garantir a vida e também desenvolver a economia, como se a economia pudesse funcionar a despeito de uma grande tragédia. 
 
Neste momento é que estão ressaltadas as desigualdades sociais, quando temos sistemas que funcionam com aulas em tempo real, com interação entre alunos e professores e materiais disponíveis, ao mesmo tempo em que vários grupos sociais estão alijados do direito à vida, do direito à educação. A epidemia não escolhe classes sociais, mas as classes mais favorecidas têm melhores condições para o isolamento social, não vivem o drama do desemprego e da sobrevivência. Que alfabetização é possível nesse contexto? 
 
Ao tentar responder a essa pergunta, vemos que não há respostas fáceis, pois se a alfabetização garante certa autonomia das crianças, jovens e adultos para realizar tarefas em casa, a própria alfabetização depende de intervenções específicas que uma atividade enviada para casa não garante. Em qualquer processo educacional, e especialmente no período da alfabetização, não só os alunos dependem dos professores, como o processo de alfabetização se faz na relação entre os pares. O que uma criança pensa e externaliza repercute no que o professor tem que fazer com ela e todos são impactados. Essa relação aprendida num grupo, esse repertório que cada turma tem e constrói a cada encontro não é substituída por atividades remotas. Assim, como bem nos mostra Maria Lúcia Castanheira, nossa entrevistada deste número, outras relações têm que ser inventadas fora do modelo escolar que conhecemos. Mas isso não se inventa da noite para o dia, com todas as instituições abaladas e com o chamado novo normal. 
 
O resultado de uma educação à distância aplicada a todos os alunos, em qualquer idade e tempo escolar, mostra o quanto esse modelo que parece “eficaz” tira a agência do professor e a agência dos alunos construída em relações presenciais.  A transferência de responsabilidade para as famílias desnuda as condições de desigualdade que a defesa do home schooling esconde. 
 
Nesse contexto, esperam-se outros papéis da família, quando são diversos os seus letramentos, as condições culturais, sociais e econômicas. O episódio recente de uma mãe que devolveu o livro didático da escola alegando ser analfabeta mostra a diversidade de situações de exclusão. A sociedade, em geral, e as famílias passam a reconhecer as especificidades profissionais para lidar com a educação escolar. Sistemas de ensino que não estavam preparados e suas primeiras ações de enviar algo para casa, assim como aulas remotas produzidas sem recursos técnicos, pois os professores e as escolas não os têm igualmente, abrem as veias da escola para a sociedade. O rei está nu. 
 
Uma tecnologia reificada e fora das relações de poder que a envolvem parece ser a solução mágica, num país em que o acesso a dados e a dispositivos não é para todos. As crianças e as famílias, dos mais diversos estratos sociais, exercem práticas de letramento digital e essa é uma descoberta interessante, mas não é, por si só, uma condição para que as ações educacionais ocorram e atinjam a todos através das tecnologias digitais. Trata-se de outros tipos de letramento e não aquele escolar, acadêmico, que precisa ser aprendido em contextos culturais específicos.   
 
Sem um rumo do governo federal, os sistemas estaduais e municipais se deparam com momentos e decisões as mais diversas: o primeiro, de espanto e medo; o segundo, de imobilidade; e um terceiro, de ativismo, para manter algum processo em curso. Daqui para a frente, com a possibilidade de extensão do isolamento, o tempo será o de reinventar a escola, o ensino, as relações, e isso se fará com novos protocolos, novas ciências e com o diálogo com experiências nacionais e internacionais.    
 
As discussões sobre a Política Nacional de Alfabetização, apresentadas neste número, mostram que alfabetização não se faz sem redução das desigualdades, sem investimento na educação, sem diversidade de enfrentamentos metodológicos e desconsiderando a diversidade de contextos. Alfabetização também não se faz com o apagamento de sua história e do acúmulo de conhecimentos de tantos pesquisadores, gestores e professores. A alfabetização no Brasil caminha, mas seus problemas têm que ser enfrentados em sua complexidade e com a continuidade de políticas de Estado.
Este número mostra como o ato de ensinar e aprender os objetos de conhecimento do mundo da escrita é complexo, havendo vários campos de pesquisa que se complementam ou que trazem novas questões. No entanto, qual ciência da leitura está preparada para este contexto? Qual paradigma daria conta dessa nova realidade no ensino da leitura e da escrita? Quais áreas podem dar respostas à pedagogia desses tempos? Pesquisas atuais e futuras sobre esse momento inusitado e práticas pedagógicas inéditas virão com o tempo. 
 
A angústia de tantos educadores e famílias e o esforço das escolas para manter vínculos com os alunos estão cedendo lugar para ações mais específicas de alfabetização.  Aguardemos, mas não sem propor ações coerentes que não aprofundem as desigualdades.