Alfabetização em um contexto de pós-pandemia

Editorial | Letra A 57


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:04:00

Inúmeros dados de pesquisas e relatos de professores reforçam uma avaliação da educação para outros contextos: as desigualdades sociais atingiram muito mais os alunos de escola pública. Como indica Anna Helena Altenfeder, na seção Troca de Ideias: “parcela importante das(os) estudantes — principalmente as(os) mais pobres, negras(os), indígenas, quilombolas e com deficiência — não tiveram atividades educativas em quantidade e qualidade suficientes durante essa pandemia, para garantir que aprendessem aquilo a que têm direito e está consolidado nos documentos oficiais”.

De um ponto de vista pedagógico, o fenômeno da ‘não alfabetização’ no período da pandemia atingiu a todas as classes sociais, revelando que, embora alguns sistemas tenham oferecido algumas oportunidades de aprendizagem, a ausência de intervenções mais diretas e regulares com as crianças comprometeu a criação de atitudes e a construção de situações de interação que fazem a alfabetização ter sentido. Isso reforça que o processo de alfabetização tem que ser acompanhado cotidianamente pelos professores, que saberão o que cada criança demanda, quais situações e quais momentos são mais propícios para abordar os conhecimentos da escrita, dialogando com algumas expectativas de aprendizagem colocadas no ciclo de alfabetização. Até que ponto podemos manter as expectativas oficiais, as regras sobre retenção usadas nos sistemas de ensino, para crianças que tiveram seu direito à alfabetização negado?

Se as crianças não tiveram oportunidades iguais, devido à dispersão de ações durante a pandemia, como usar a ideia de defasagem que se instalou em alguns discursos? A ideia de recuperação também é ambígua, pois classifica alguns em pontos de uma escala que os distinguem abaixo das “médias” de aprendizagem. Não temos palavras que consigam estabelecer acordos semânticos e pedagógicos que deem conta do fenômeno pós-pandemia, mas podemos ter concepções, políticas e práticas que não percam de vista que devemos tratar a alfabetização a partir do ponto de chegada das crianças. Que oportunidades não tiveram em termos do conhecimento linguístico e sociointerativo da escrita? Qual a especificidade do processo de alfabetização escolar? Na escola se se aprende a ler e escrever com determinadas condições emocionais, sociais, com processos identitários e histórias vividas em conjunto que são construídos nas turmas, com oportunidades iguais e intervenções de um professor mediador.

Sobre esse aspecto é relevante retomar situações vividas na ‘retomada’ das aulas presenciais, como a apresentada pela professora que, ao se deparar com a volta das crianças, constata que um dos maiores desafios tem sido desenvolver o pertencimento de grupo, depois que elas passaram dois anos vivendo realidades muito diferentes umas das outras em suas casas.

Dados muito contundentes estão na seção Em Destaque, mostrando os desafios de retomar as aprendizagens escolares, com tudo que trazem junto: os conhecimentos específicos, a convivência, o diálogo, as “operações de corpo”. Diagnósticos precisam ser mais frequentes para o que vem sendo chamado de “recomposição das aprendizagens”: expressão que tem sido usada em alguns discursos de retomada e reconstrução do Ministério de Educação após alguns anos de desmonte, agravado com a falta de políticas de articulação desse órgão federal com estados e municípios.

No momento, há intenções políticas e pedagógicas de garantir o melhor para as crianças. Não há uma metodologia milagrosa para alfabetizar nem para garantir que crianças possam recuperar o que perderam, no que vem sendo chamado de retomada ou criação de oportunidades de aprendizagem. Essa é uma busca coletiva e institucional, não um problema exclusivo dos professores. Fica o desafio, para os entes federados e os municípios, de conhecer o que está dando resultado, de divulgar boas iniciativas criadas pelos sistemas de ensino, de construir repertórios didáticos com a maior pluralidade de metodologias que possam ajudar outros professores, de retomar as políticas do livro e de outros materiais, de retomar processos de formação de professores.

Uma reflexão decorrente do período pandêmico, sintetizado por Maria Teresa Gonzaga Alves, expressa uma constatação relevante: “um legado que essa experiência deixará para a educação é o maior reconhecimento da importância da escola e de suas professoras para garantir o direito de as crianças aprenderem a ler e a escrever.”