Alfabetizar uma criança cega é ir além da Leitura e Escrita

Como ir além do ensino da leitura e escrita na alfabetização com quem ‘enxerga’ através dos ouvidos, mãos e nariz? Inclusão, adaptações, tecnologia e compreensão podem ser algumas das respostas


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:47:00

 
Por Teresa Cristina 
 
Um dos ideais da educação inclusiva é que crianças portadoras* de deficiências - sejam elas mentais, físicas ou sensoriais - estejam em pé de igualdade com as crianças sem deficiência, frequentando as séries indicadas para suas faixas etárias e recebendo tratamento humanizado e igualitário. Para a pesquisadora e professora da área de Pedagogia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) Kátia Regina da Silva, a criança cega, na alfabetização, deve ser incluída nos mesmos espaços da criança vidente: “Acho que o apoio especializado é importante, mas o processo de alfabetização deve ser feito na escola regular, pois não tem por que não estar lá, não há impedimento para que ela não aprenda junto com os outros; o que ela precisa é de adaptações. O processo de aprendizagem em si é o mesmo (...) é só que uma escreve furando, fazendo pontos (o Braille) ou escreve no computador e as outras escrevem à mão”, afirma.
 
No entanto, apenas colocar as crianças cegas junto das videntes na mesma série e espaço não é a solução. É necessário que haja a inclusão de fato e não somente a inserção, afirma a professora de Ensino Fundamental Adriana Veríssimo, que também defende que a inclusão deve ser feita, de preferência, na escola pública: “Mesmo na escola pública regular, às vezes ele (o aluno) está lá só inserido, mas não incluído. A gente percebe isso. A luta nossa e o que eu acredito é que esse aluno possa e deva estar na escola regular incluído. Participando das mesmas atividades, em uma sala adaptada, no que ele dar conta”. Adriana trabalha há oito anos com Atendimento Educacional Especializado (AEE) no Centro de Referência e Apoio à Educação Inclusiva Rafael Veneroso (CRAEI), em Betim (MG).
Incluir e alfabetizar
Além de incluir o aluno na escola, deve-se pensar nele para além de sua deficiência, valorizando e entendendo que ele já carrega consigo uma bagagem de conhecimentos. A alfabetização de uma criança cega se inicia antes mesmo do contexto escolar: “a criança cega, assim como a vidente, tem acesso à escrita desde pequena, ela vive imersa numa cultura letrada e quem é imerso numa cultura letrada vai se letrando pela vivência nesse contexto; então, ela já chega à escola com uma quantidade de conhecimentos da língua escrita bastante amplo”, explica a professora Kátia Regina. Ela afirma, ainda, que valorizar esse conhecimento e todos os outros saberes trazidos pela criança não é apenas ter ciência deles, mas inseri-los na prática escolar, pois, dessa forma, a criança se sente incentivada e mais interessada na leitura e na escrita.
 
Um erro comum na alfabetização dessas crianças é enxergar o processo de forma muito reducionista, se fechando apenas no braille e suas regras - que é importante, mas não exclusivo - e não compreendendo a amplitude da alfabetização de uma criança cega. A professora Flávia Cristina Manicardi, professora alfabetizadora e de Língua Portuguesa do Instituto São Rafael - escola referência de ensino a pessoas cegas em Belo Horizonte (MG) - há 12 anos, explica que, muitas vezes, a leitura e a escrita ficam em segundo plano e que outros caminhos podem ser trabalhados para chegar a essas habilidades. Por exemplo, a exploração do espaço físico se mostra muito importante nesse ponto, pois explorando (e aprendendo a explorar), a criança ganha confiança e segurança em si mesma e isso é muito importante para aprender a ler e escrever, afirma Flávia.
 
A professora utiliza combinados com as crianças, como colocar pertences deles em cima da mesa dela, no centro da sala, e pedir, então, que eles se aventurem a buscar. “Eu tento vários meios de eles se libertarem do medo, da insegurança, por exemplo. Tenho uma criança que só ficava encostada na parede, hoje ela já consegue, só segurando na ponta do meu dedo, andar, correr”.
 
É importante, também, trabalhar com as crianças não videntes os outros sentidos desde cedo, e a família pode ajudar bastante nessa parte. A professora Adriana dá o exemplo de uma mãe de um de seus alunos que trabalhava a questão sensorial utilizando materiais diversos. “Ela ensinou a textura e o cheiro de um bolo estragado para o filho, dizendo ‘não coma se estiver assim’”. Para Adriana, “toda a questão sensorial e toda essa estimulação deve ser feita desde pequenininho, assim que a família descobre que a criança é cega ou que vai ficar cega”.
A tecnologia como aliada 
A tecnologia é outro elemento que pode contribuir de várias maneiras, devendo ser bastante explorada, mas com o cuidado para que não substitua outras ferramentas essenciais, como o próprio ensino do braille: “a tecnologia veio para nos libertar, mas não para nos alfabetizar, porque com ela você pode ensinar a criança até a escrever, mas ela nunca vai ser um leitor, ela sempre vai ser um ouvinte”, explica Flávia. A pesquisadora Kátia Regina reforça a ideia da tecnologia como meio de libertação e como meio de trazer independência no ensino: “O que ela (a criança) faz ali não precisa de nenhum intérprete para outra pessoa ler, por exemplo”.
 
Um exemplo do uso de tecnologias na sala de aula com alunos cegos é o uso de podcasts, que são arquivos de áudio com conteúdos variados, bem parecidos com programas de rádio, mas diferentes no formato e na disponibilidade. Os episódios (como são chamados os programas) ficam acessíveis para serem ouvidos em qualquer momento e em qualquer lugar. Adaptações, como história em quadrinhos em áudio através de podcast, podem ser uma alternativa para dinamizar a sala de aula. Outro instrumento que pode ajudar é o MecDaisy, um software que faz a reprodução de livros e textos em áudio no computador, o que pode auxiliar o aluno a fazer a ‘leitura’ dos livros didáticos.
Adaptações e materiais no contexto escolar
Algumas ações mais simples podem auxiliar tanto o professor quanto o aluno cego na escola. Kátia defende aulas mais descritivas como facilitadoras: “A nossa escola trabalha muito o visual, por exemplo. Escreve-se muito no quadro, muitas atividades de leituras em livros e leituras silenciosas. Portanto, o professor tem que verbalizar mais para as crianças, fazer um papel parecido com o audiodescritor em um filme”. Para a professora, “isso é uma coisa simples, mas que exige mudanças na forma de reconhecer (a criança). Ela tem que saber o que está acontecendo o tempo todo”.
 
O uso de materiais e ferramentas na alfabetização também é muito importante e, por isso, bastante visados nas salas de aulas com alunos com deficiência visual ou nas chamadas ‘salas de recurso’, que são salas lotadas de equipamentos e materiais didáticos para auxiliar o AEE. O próprio braille necessita de alguns materiais para ser escrito, como regletes (placa com furos chamados de ‘celas’, em que se aplicam os pontos do braille), punção (instrumento que faz os pontos no papel) e a própria máquina de escrever braille.
 
Além desses, outros instrumentos se fazem presentes, como o sorobã, um aparelho de cálculo de origem japonesa completamente tátil, e mapas em alto relevo, uma inovação recente que vem sendo bastante útil. Existem materiais que já vêm prontos e adaptados, mas é possível também fazer adaptações em coisas do dia a dia. A professora Flávia, por exemplo, utiliza bolinhas de jornal e papel crepom, argila, massinha, entre outros, para trabalhar a questão tátil e a flexibilidade das mãos, muito necessárias na hora de utilizar o braille.
 
Já Adriana relata as adaptações que fez para incluir a literatura e as imagens na sala de aula. Ela explicou que, muitas vezes, as escolas não têm livros de literatura infantil adaptados e que ela mesma fazia esse trabalho, imprimindo as histórias na impressora braille e contornando os desenhos com cola quente para ficarem em alto relevo, o que permitia que, tocando, a criança pudesse “ver” a imagem. “Adaptei alguns livros de literatura infantil simples e aí ele (o aluno) lia e eu falava das histórias. Se falava do vento, eu perguntava ‘você já sentiu vento? Vamos lá fora sentir o vento’, por exemplo”.
 
Por fim, além dos materiais, técnicas e estratégias, o mais importante é a disponibilidade, vontade e disposição do professor ao ensinar a essas crianças. “Aprenda tudo sobre a deficiência que você vai trabalhar, nunca seja babá do deficiente, mas, sim, esteja sempre ali disposto a libertar o deficiente, dentro da limitação dele”: esse é o principal conselho da professora Flávia aos colegas professores.
 
Letra A em áudio
 
Confira reportagem em áudio exclusiva para o portal do Ceale, em que as entrevistadas falam um pouco mais sobre o que considerar para melhor auxiliar e incluir a criança cega em sala de aula:
 

 
 
*Atualização (08/01/2019): o termo "portador de deficiência" não é mais utilizado, passando a ser preferido utilizar o termo "pessoas com deficiência".