Aracy Alves Martins: A África é diversa
Em entrevista para o Letra A, a professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG discute aspectos do ensino de leitura e escrita de países africanos falantes da Língua Portuguesa e de nosso país sob o olhar da discussão racial
Letra A • Quinta-feira, 19 de Julho de 2018, 15:28:00
Com uma trajetória acadêmica de mais de dez anos de pesquisa sobre a diversidade de países africanos que têm como uma de suas línguas – e língua oficial – o português, estudada a partir de questões linguísticas, literárias, pedagógicas, raciais e socioculturais, a professora Aracy Alves Martins, mesmo aposentada da Faculdade de Educação da UFMG desde o ano passado, continua firme em sua dedicação à temática. Nesta entrevista concedida pela professora e também pesquisadora do Ceale por e-mail ao Letra A, Aracy foi convidada a retomar suas experiências e aprendizados em países africanos nos quais esteve para a realização de projetos, discutindo, a partir disso, aspectos do ensino de nosso país e de países como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, sempre envolvendo a questão racial.
Por Natália Vieira
Desde 2003, a Lei Brasileira (Lei 10.639) institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas de nosso país. Sob qual abordagem e viés as questões históricas e culturais do continente africano eram trabalhadas nas escolas brasileiras antes da criação da lei? O que determinou a necessidade de sua criação?
Estudos sobre países africanos eram, quando tratados, costumeiramente muito tímidos e omissos quanto à importância da sua contribuição para a cultura e para a história da humanidade, além de considerar África como um continente homogêneo, sem as diferenças culturais e socioeconômicas dos seus mais de cinquenta países e de não primar por imagens positivas e belas, frente à pobreza e à fome. Dificilmente, a situação dos afrodescendentes era problematizada, enquanto desigual e antidemocrática, em território brasileiro, assim como não se procurava discutir e desnudar o racismo social e institucional de que eram vítimas.
A senhora realizou diversos projetos em países africanos de língua portuguesa que fizeram parte de suas pesquisas. Qual foi a importância de fazer parcerias com instituições de ensino nesses países? A criação da Lei 10.639 teve influência na aproximação entre pesquisadores do Brasil e de países africanos?
O Curso de Especialização “História da África e Culturas Afro-Brasileiras: uma introdução à Lei 10.639/2003” [organizado em 2006 pela professora da UFMG Nilma Lino Gomes, a partir de solicitação da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, e coordenado pela professora Aracy a convite da professora Nilma] nos impeliu a buscar contatos verdadeiros, vivenciando com sujeitos africanos concretos a sua história e a sua cultura, múltiplas e diferenciadas. Esse também é um princípio que buscamos quando acolhemos a ideia de Intercâmbio para os docentes e discentes, tanto do Brasil quanto dos países africanos de língua portuguesa, como é o caso de Cabo Verde. Por isso, a nossa porta de entrada foi a Universidade de Cabo Verde, seus docentes e discentes das áreas de Ciências Sociais, de Ciências da Educação, de Jornalismo, bem como diversos setores da Graduação e da Pós-graduação (Reitoria, Cátedra Eugénio Tavares, Cátedra Amílcar Cabral, Instituto Universitário da Educação). Tudo isso nos possibilitou encontros com profissionais de instituições cabo-verdianas, como: o Instituto do Património Cultural (IPC), do Ministério da Cultura, a Biblioteca Nacional de Cabo Verde (BNCV), o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP) e a Academia Cabo-verdiana de Letras.
Nosso intuito principal, entretanto, era chegar aos professores e alunos do ensino básico, sobretudo se pretendíamos registrar o fenômeno das tensões entre línguas: oficial e maternas. Nesse sentido, um dos encontros mais profícuos, em todas as nossas Missões de Trabalho, era sempre com a Dra. Margarida Santos, Diretora Nacional de Educação, do Ministério da Educação e Cultura, discutindo o Projeto Piloto Bilíngue (Coordenado e com Cartilha produzida pela professora da Uni-CV, Ana Josefa Cardoso), pressupondo a convivência da Língua Portuguesa e da Língua Cabo-verdiana. Pudemos acompanhar atividades em sala de aula, e até mesmo reuniões de pais e mestres, constatando as vantagens de os alunos poderem estudar, não somente cantando, reproduzindo versos, provérbios, brincadeiras, além de procurar entender conceitos, hipóteses e explicações em língua portuguesa, mas também em sua própria língua. Assim, acompanhamos atividades do Prof. Fernando, da Escola Ponta d’Água, em Praia, Ilha de Santiago, bem como da Profa. Crisolita, da Escola António Aurélio Gonçalves, em Mindelo, Ilha de São Vicente.
Buscamos a palavra de uma cabo-verdiana. No dia 31 de maio de 2018, foi realizado em Praia, Cabo Verde, o lançamento do mais novo livro da escritora Vera Duarte, da Academia Cabo-verdiana de Letras (que já esteve na UFMG, tanto no Centro de Estudos Africanos, como no XII Jogo do Livro), Risos e Lágrimas, “que será um tributo a cabo-verdianos e brasileiros, a quem atribui muita da sua visibilidade literária”, já que suas obras têm sido objeto de estudo em várias universidades brasileiras. Além disso, dedica-se à temática da formação de leitores docentes e discentes, quando afirma a importância de trabalhar a partir da infância, no texto do Boletim do IILP (Instituto Internacional de Língua Portuguesa), com o qual temos trabalhado, em todas as nossas missões e com quem estamos conectados, nas ações educativas desenvolvidas.
Um de seus objetos de estudo foi a tensão entre línguas maternas encontrada em países africanos, mais especificamente nos países que têm o português como língua oficial. De que forma essas tensões dificultam o aprendizado e o desenvolvimento da leitura e escrita dos alunos nesses países — ou também estimulam práticas inovadoras?
Em todos os países africanos em que pesquisamos, seja direta, seja indiretamente, através de pesquisadores locais, a língua portuguesa é língua oficial, ensinada na escola, exclusivamente, sem que haja, apesar das tentativas, uma convivência entre língua oficial/línguas maternas. Há situações, inclusive, em que a criança passa a ter um contato com a língua portuguesa, apenas quando chega à escola, onde vai estudar essa língua com a qual não tem nenhuma familiaridade na oralidade e, certamente, apresenta dificuldades na escrita. Cada país busca alternativas e inovações, desde o Projeto Piloto Bilíngue, como em Cabo Verde, que experimenta a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana com professores/as distintos/as, ou até mesmo com um/a mesmo/a professor/a, sendo estudadas, simultaneamente, até a produção de manuais escolares.
O mesmo ocorre em Moçambique: há o estudo de 16 línguas nativas, cada uma em sua região, tornando-se ao final bilíngue; “cada zona linguística nacional”, além da língua oficial, “ensina e aprende a sua língua”, conforme propõe o pesquisador angolano Silvestre Gomes, concordando com o professor e pesquisador cabo-verdiano Manuel Veiga, que afirma: “negar o Crioulo não só significa negar a nossa identidade como também dificultar a pedagogia do português. A língua primeira constitui a melhor referência na aprendizagem de uma segunda língua”. E continua: “Ao português que já é língua oficial e de situações formais de comunicação, torna-se necessário alargar o seu ensino e conferir-lhe o estatuto de língua do quotidiano informal, em paridade com a LCv [Língua Cabo-verdiana]. Quanto à LCv, que já é língua do quotidiano informal, há que se reconhecer-lhe o estatuto oficial em paridade com a LP, reforçar o seu uso formal e implementar o seu ensino, do primário ao universitário (…) Tal política linguística é uma exigência da nossa história, da nossa cultura, da nossa identidade”.
Odete Semedo, ex-ministra da Educação em Guiné Bissau, argumenta: talvez seja este (também) o sentido mais exato da alfabetização: “aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.” E conforme infere Manuel Rui, quando da literatura transborda a identidade do autor, é arma de luta e, nessa linha, trata-se de literatura e identidade.
Outro eixo de suas pesquisas foi a análise de manuais escolares e livros didáticos, tanto brasileiros quanto de países africanos de língua portuguesa, com o propósito de investigar os discursos e as representações sobre a África e os negros presentes nesses materiais. Quais são as principais diferenças encontradas ao comparar esses materiais?
Os Manuais Escolares foram os primeiros materiais a serem analisados, logo no início da pesquisa. Considerando os Manuais Escolares, no Brasil, e as políticas públicas de distribuição de livros didáticos (PNLD – Programa Nacional do Livro Didático – Ensino Fundamental; PNLEM – Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio), pesquisas demonstram que esses programas têm sido responsáveis por mudanças significativas, ainda que nem todas as desejáveis, sobretudo no âmbito das relações raciais.
Nos demais países de língua portuguesa, perceberam-se diferentes modos de organização das políticas públicas quanto aos manuais escolares. Segundo dados encontrados nos próprios manuais impressos nos países africanos, foi constatado um manual escolar único, em cada país, fato questionado pelos professores, por não terem “outra alternativa” de escolha do livro para uso em sala de aula. Em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde, a produção de manuais escolares era realizada, para o Ministério da Educação e Cultura, com características de cada país, em Cooperação técnica com uma fundação portuguesa, de manuais escolares de Língua Portuguesa, em forma de coletânea de textos.
Há que se ressaltar, em primeiro lugar, que o Ministério da Educação de Cabo Verde produziu, recentemente, manuais escolares para o Ensino Básico, ainda não analisados por esta pesquisa. Em segundo lugar, ressalto a produção de Manuais, no âmbito do Mestrado Português Língua Segunda, na Universidade de Cabo Verde, que vem dar suporte a professores e alunos, sobretudo em relação à convivência das duas línguas, Língua Portuguesa e Língua Cabo-verdiana.
Em Guiné Bissau, o manual escolar produzido em cooperação era encontrado somente na biblioteca, não sendo vendido aos alunos. Em vez disso, era utilizada uma antologia de textos, produzida por um órgão de formação continuada de professores, muito elogiado, o PASEG – Programa de Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau –, antologia esta considerada “útil” pelos professores, “mas falta [no interior dos livros, atividades de] gramática, exercícios, vocabulário”, assim como também esses mesmos professores reivindicavam “que houvesse materiais para os docentes: gramáticas, dicionários, livros de leitura” e que essa antologia “não fosse vendida [e, sim, distribuída, gratuitamente] aos alunos”.
Em Angola e Moçambique, havia uma variedade maior de títulos e autores oriundos desses dois países, respectivamente. Os manuais de Língua Portuguesa apresentavam coletâneas de textos, devidamente acompanhados por atividades de exploração, destacando-se imagens, em fotos e desenhos, mais próximas ao fenótipo da negritude africana, inclusive entre os autores.
Procuramos conhecer cada vez mais sobre as várias Áfricas, dando voz aos próprios sujeitos africanos, em contextos de diferenças. Continuamos a interrogar, junto com Van Dijk: quais modelos mentais estão sendo construídos no Brasil, a respeito do continente africano, dos africanos, nossos ancestrais e afrodescendentes, nos livros didáticos de Português e de História, após uma década da Lei 10.639/03, que podem favorecer a construção de identidades raciais positivas nas crianças, especialmente, as negras?
Quanto à produção literária dos países africanos nos quais a senhora esteve e desenvolveu projetos, de que forma essa literatura chega e é trabalhada nas escolas?
Nas salas de aula que acompanhamos, pudemos assistir a estudos de provérbios africanos, cantigas de roda, versos, poemas e, sobretudo, pequenas histórias. Em São Tomé e Príncipe, os livros de Alda do Espírito Santo estão nos manuais escolares, nas paredes, nas bocas das crianças. Em Cabo Verde, muito da obra do herói Amilcar Cabral, que lutou pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, foi reverenciada, reproduzida, lida e aplaudida pelas crianças em sala de aula.
Nos encontros realizados com crianças, jovens, professores e pesquisadores, em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde, seja nas escolas, seja na Biblioteca Nacional de Cabo Verde, foi possível ouvir pessoas contando histórias, declamando versos e poemas.
Muitas obras são escritas em língua portuguesa, mas Entre o ser e o amar, de Odete Semedo, é escrito, na mesma página, em português e em crioulo.
Na kal lingu ke n na skirbi Em que língua escrever
Ña diklarasons di amor? As declarações de amor?
Na kal lingu ke n na kanta Em que língua cantar
Storias ke n kontado? As histórias que ouvi contar?
(...) (...)
Pa n kontal na kriol? Falarei em crioulo?
Na kriol ke n na kontal! Falarei em crioulo!
Odete Semedo, Entre o ser e o amar.
A obra de Tomé Varela, mais de seis volumes, é produzida em língua cabo-verdiana: Na Boka Noti [Na Boca da Noite].
Un libru di stórias tradicional (...)
Pa tudu nos gentis grándi y pikinóti na país o na stranjeru.
Muitos dos autores, como Mia Couto e Ondjaki, têm sido premiados, tanto em Portugal como no Brasil, indicados, por exemplo, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Sobre a Produção Literária dos países africanos, fizemos um levantamento que, felizmente, será cuidadosamente analisado por nossa Pós-doutoranda atual, professora Daniela Freitas, da UEMG, que está se dedicando a pesquisar e analisar a “Literatura infantil em países africanos de língua portuguesa”.
Em uma pesquisa que analisou o perfil dos personagens de romances brasileiros contemporâneos, publicados entre 1990 a 2004, a professora da UnB Regina Dalcastagnè encontrou apenas três protagonistas mulheres e negras em 258 livros estudados, para citar apenas um dado alarmante. Nossa literatura clássica também não se distancia desse número. A realidade de nossa literatura infantojuvenil é diferente?
Acontecia no Brasil, na produção literária para crianças e jovens, de modo semelhante ao que acontecia nos livros didáticos, uma ausência e, muitas vezes, uma depreciação de personagens negros, com características negras, de certo modo, espelhando a imagem que aos negros era atribuída socialmente. Assim, quando Ana Maria Machado escreveu Menina Bonita do Laço de Fita, em 1986, houve até mesmo ilustrações diferenciadas, até chegar à ilustração de Claudius, com características afrodescendentes. O livro de Valéria Belém, O Cabelo de Lelê, de 2007, com ilustração de Adriana Mendonça, já no século 21, teve uma coragem maior para assumir a negritude como algo que não é sempre um peso, mas que pode ser uma libertação. Muitas outras obras vieram para mostrar que negros e negras podem sentir com gosto sua imagem, construindo melhor sua autoestima. Publicações no Brasil e no exterior evidenciaram isso, comentando obras, como: Quando eu voltei, tive uma surpresa: (cartas a Nelson), de Joel Rufino dos Santos, 2000. Antologia da poesia negra brasileira: o negro em versos, de Luiz Carlos dos Santos, 2005. Mãe África: mitos, lendas, fábulas e contos, de Celso Sisto, 2007. Chica e João, de Nelson Cruz, 2008. Falando banto, de Eneida Gaspar, 2007. Betina, de Nilma Gomes, 2009.
Além da questão de gênero e da depreciação de personagens negros, com características negras nas histórias, o que se confirma também na produção da Literatura Infantojuvenil, há outro aspecto que acrescento: a questão da autoria negra, evidenciada por pesquisadores como Eduardo Duarte e Íris Amâncio, pós-doutoranda na FaE, em 2014, cuja temática era, justamente, a autoria negra. É muito comum serem reverenciados Mia Couto e Eduardo Agualusa, não negros, que se destacam nessa produção de literatura para crianças e jovens, em detrimento de outros autores, muitas vezes premiados, como o angolano Ondjaki, a escritora moçambicana Paulina Chiziane, o moçambicano José Craveirinha, o brasileiro Joel Rufino dos Santos, ou a brasileira Conceição Evaristo, que está sendo indicada para a Academia Brasileira de Letras por quem conhece bem sua obra, cujo fenótipo se aproxima mais dos negros, dos afrodescendentes.
Para além da legislação, há uma política pública consistente atualmente que esteja conseguindo implementar nas salas de aula materiais que não apenas trazem uma complexidade no trato da cultura e da história africana e afro-brasileira, como também são de autoria de educadores e escritores negros, tanto brasileiros quanto africanos?
Apesar de retrocessos anunciados pelo governo brasileiro em relação à Lei 10.639/2003, afortunadamente contamos, no Brasil, com o Movimento Negro, chamado, com ênfase, de Educador pela professora Nilma Lino Gomes, no seu livro 'O Movimento Negro Educador: Saberes Construídos nas Lutas por Emancipação' (2017), justamente por vir, ao longo das décadas, se irmanando a outros grupos, como o Movimento de Mulheres Negras, com objetivos de repensar a escola, descolonizar os currículos e dar visibilidade às vivências e práticas dos sujeitos. Com Prefácio de Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, que afirma ter sido “orientador da Nilma tanto quanto ela me orientou”, a obra busca construir a pedagogia das ausências e das emergências, pelo ponto de vista da pedagogia da diversidade, que é uma pedagogia da emancipação. Assim, vários movimentos sociais, outras instituições e várias universidades se põem nessa luta, procurando ampliar a formação de professores, em todo o território nacional: UFMG, UFSCAR, UFPR, UFBA, UNB, entre outras, pelo ponto de vista das Epistemologias do Sul, a partir das quais temos pesquisado e trabalhado em conjunto com países africanos.
Sugestões de literatura africana
Cinco indicações da professora Aracy e de sua orientanda Daniela Freitas de livros literários de autores de países africanos falantes da língua portuguesa:
- O leão e o coelho saltitão, de Ondjaki. Coleção Mama África. Editora Língua Geral, 2008.
- O beijo da palavrinha, de Mia Couto. Coleção Mama África. 1ª edição. Editora Língua Geral, 2006.
- Entre o ser e o amar, de Odete Semedo. INEP, 1996.
- Mataram o rio da minha cidade: estórias, de Alda Espírito Santo. Instituto Camões, Centro Cultural Português, 2002.
- Risos e Lágrimas, de Vera Duarte. Rosa de Porcelana Editora, 2018.