As multifacetas da alfabetização
As contribuições de diversas áreas do conhecimento para a alfabetização
Letra A • Segunda-feira, 24 de Agosto de 2020, 16:21:00
Por Andreza Miranda
A alfabetização é um processo presente na vida de crianças, adolescentes e adultos ao redor do mundo desde a Antiguidade. Tal processo, com suas concepções e abordagens próprias a cada país e época, teve diversas alterações com o passar dos séculos. A partir do século XX, diferentes áreas do conhecimento, como fonologia, psicologia cognitiva, linguística, neurociência, história, pedagogia, perspectiva discursiva da linguagem e sociolinguística começam a contribuir para essas mudanças, afetando tanto o entendimento do processo de aprendizagem da leitura e da escrita quanto a prática de ensino.
Até as décadas de 1970 e 1980, no entanto, o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita era tido como mais fácil, pois a questão era restringida ao uso de métodos, apesar de os métodos serem constantemente motivo de debate dentro das políticas públicas. “Pensavam-se métodos sem uma necessária construção do conhecimento sobre o objeto que é a língua, que é o sistema alfabético ortográfico”, explica a professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) Fernanda Barros.
Segundo a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Francisca Maciel, antes se tinha uma determinada cartilha que deveria ser seguida em todas as turmas e em todos os anos. “Às vezes se usava o mesmo material por cinco, dez anos, as mesmas lições, os mesmos exercícios, não levando em conta nenhum conhecimento e trabalho de interesse por parte do aluno (...) a autonomia do professor estava totalmente tolhida”.
No entanto, na década de 1980, pesquisas de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, estudiosas da área da psicologia, tiveram enorme influência nos estudos sobre alfabetização no país, ao mostrarem que quem está no processo de alfabetização passa por um processo de aprendizado por etapas, levando a conclusões que colocaram “em xeque” os métodos tradicionais que se utilizavam na alfabetização. “Elas demonstraram que as crianças e os adultos pensam sobre a leitura e a escrita, que eles têm conhecimento e que eles vão reconstruindo esse conhecimento, [que] não necessariamente passa por lições e famílias silábicas”, afirma Francisca.
Nessa época, crianças que não conseguiam consolidar o processo de aquisição do sistema de escrita eram facilmente reprovadas, e pouco se sabia sobre os resultados obtidos dentro das escolas. A partir de avaliações externas que começam a ser feitas pelo governo, “é que começam a aparecer para todos os grandes problemas que a gente tinha de alfabetização, porque antes eles ficavam um pouco escondidos no âmbito das escolas”, afirma Fernanda.
Entender o texto escrito
Os anos 1980 foram muito fecundos para as pesquisas sobre alfabetização, pois outras áreas e perspectivas também voltaram sua atenção para a questão do ensino e do aprendizado da leitura e da escrita. A linguística foi uma delas, “chegando como mais um elemento para somar, para contribuir”, de acordo com Fernanda Barros.
Segundo a professora, as contribuições da linguística ficam mais claras nas relações entre grafemas e fonemas. No entanto, Fernanda explica que a linguística não colabora para a alfabetização somente nos aspectos fonológicos, já que a linguística tem várias ramificações, sendo a fonologia uma delas. “Por exemplo, na compreensão dos aspectos sintáticos do texto, como é que o texto escrito se organiza de uma forma diferente do texto oral, exatamente porque eles cumprem funções sociais diferentes”.
Para Fernanda, a decisão da atual gestão do Ministério da Educação de focar no método fônico para resolver os problemas da alfabetização é um retrocesso. “Se nós, linguistas, passarmos a pensar que a nossa área por si só é capaz de resolver o problema, nós vamos continuar com o problema sem solução, (...) como se a parte - porque ela é só uma parte - pudesse dar conta do todo”. Como professora e linguista, Fernanda acredita que o ensino deva ser mais significativo para os alunos, a partir da observação e da consideração do dinamismo da alfabetização: “Se esse processo de alfabetização é um processo complexo e multifacetado, ele precisa ser considerado como tal.”
Além da linguística, a perspectiva discursiva da linguagem também começa a contribuir, nessa mesma época, para a alfabetização. Fernanda explica que, com essa perspectiva, os usos do sistema alfabético também são pensados. “Seria mais ou menos um movimento na direção, a meu ver, da questão do letramento”, afirma. Para ela, essa perspectiva auxilia a se pensar que é possível um trabalho com o texto escrito em sala de aula com crianças que ainda não dominam o sistema alfabético. “Ou seja, não é preciso esperar a criança se apropriar do sistema alfabético ortográfico para ela compreender como é que o texto escrito funciona, isso pode se dar concomitantemente.”
O som e a cognição
Ainda na década de oitenta, a fonologia também era uma área que se voltava mais especificamente para a alfabetização. Dentro de suas contribuições, a fonologia tem como ponto principal a compreensão das relações entre os grafemas e os fonemas, contribuindo então para o entendimento dos sons representados na escrita.
Segundo a professora do departamento de Psicologia da UFMG Ângela Maria Vieira, “a decodificação é o cerne do conceito de alfabetização”, tendo como pré-requisitos a consciência fonêmica e o domínio do princípio alfabético. A professora da UFMG também aponta outras competências necessárias para o processo de alfabetização, que, ela explica, são estudadas pela psicologia cognitiva: familiaridade com textos impressos, ampliação de vocabulário, desenvolvimento da habilidade de ler com velocidade e precisão e o uso de estratégias de compreensão. Para Ângela Maria, pesquisas mais recentes têm demonstrado que “há benefícios palpáveis para o aprendiz quando o ensino da leitura e da escrita é feito em forma de instrução explícita e sistemática, como a adotada pelos métodos fônicos (que pertencem à classe dos métodos sintéticos de alfabetização)”.
Na visão da professora da UFMG, o documento da Política Nacional de Alfabetização (PNA), divulgado em agosto de 2019, “contempla o conjunto de evidências científicas produzido pela ciência cognitiva da leitura sobre como se aprende a ler e a escrever e a maneira mais eficaz de se ensinar essas habilidades”. Porém, para a professora Raquel Fontes, há uma distorção ao se achar que se deva adotar o antigo método fônico para a alfabetização. “A gente está tendo esse retrocesso de uma proposta política de abandonar o letramento e se adotar o método fônico tradicional”, diz a professora. Para ela, a adoção de um único método para a alfabetização não é positiva. Em sua visão, com esse método, o professor teria que trabalhar com a criança como se a aula fosse de fonética, o que é algo que ela aponta que faz na universidade com seus alunos. “Não é bem assim que é para fazer com a criança, porque perceber os sons da fala é muito abstrato para ela. Como você trabalha com a criança? É no texto, em parlendas, em repetição de sons numa parlenda, numa poesia, numa música, na rima... Então você trabalha de uma maneira lúdica com as crianças nos textos, trabalhando a sonoridade”, afirma.
Segundo a professora Raquel, ainda houve um momento em que a fonologia foi “deixada de lado”, devido às leituras erradas sobre o construtivismo, recuperando-se depois sua importância. Raquel explica que houve um amadurecimento com a compreensão de que o que a fonologia propõe mais recentemente não é o método tradicional do passado.
Divergência nos métodos, convergência nas alternativas
Apesar das discordâncias sobre as escolhas de abordagem, as professoras Ângela e Fernanda destacam a importância da formação de professores para que o processo de alfabetização seja bem-sucedido. Fernanda acredita que o grande desafio atual é promover uma formação qualificada para os professores alfabetizadores. “As ciências já construíram muito, então agora a gente precisa fazer uma transposição didática de tudo isso”, afirma a professora da UESC. Para ela, falta procurar equilíbrio. “Magda Soares tem falado muito sobre a curvatura da vara, a gente vai sempre muito para um lado ou vai com a vara sempre para o outro lado”, afirma.
Para Ângela, a utilização de uma abordagem baseada em evidências não é suficiente. “Os estudos mostram que, como essa abordagem é implementada pelas professoras na sala de aula, faz toda a diferença”. A professora da UFMG também acredita que a ciência já mostrou como a alfabetização deve ser realizada e que a maior mudança a ser feita é investir na formação do professor. Essa formação, em sua visão, deve promover um encontro entre as áreas da ciência cognitiva da leitura, psicolinguística e neurociências com a pedagogia.
A pedagogia, explica a professora Francisca, lida com as várias dimensões das diferentes áreas do conhecimento que influenciaram a alfabetização. Para ela, a formação pedagógica do professor é o que o prepara para “lidar com a criança como um todo”. Justamente por ter que lidar com a criança de forma ampla, Francisca explica que a tarefa do pedagogo não é fácil. “Nós estamos diante de muitas dificuldades, principalmente no que diz respeito a essa formação desse profissional para atuar num todo”. Para ela, o tempo de formação atualmente é curto para o tamanho da complexidade do processo de alfabetização.
A professora da UFMG acredita que é necessário haver maior articulação das diferentes áreas de conhecimento com a pedagogia. “Não é o pedagogo fazer essa junção, mas acho que as questões pedagógicas devem estar muito presentes nas diferentes áreas do conhecimento, e não ser especificamente só da pedagogia”, defende.