Brian Street, na teoria e na prática
O legado do professor acadêmico britânico, que faleceu em junho do ano passado
Letra A • Quinta-feira, 19 de Julho de 2018, 14:48:00
Por Gilcinei Carvalho*
Muitos de nós fomos e somos influenciados pelo trabalho do pesquisador Brian Street. No seminal estudo sobre as práticas sociais de letramento, Letramento na teoria e na prática (1984), Street nos alertou sobre a presença dos modelos autônomos do letramento, indicando uma ênfase excessiva em um julgamento sobre as habilidades de ler e escrever marcadas pelo processo de legitimação via usos escolares de escrita. O reconhecimento dos diversos e diferentes usos da escrita permitiu a emergência de argumentos para identificar a pluralidade das práticas sociais de letramento. Essas práticas, no entanto, carregam modelos ideológicos e, portanto, evidenciam o postulado de que não existem formas e usos neutros de letramento. Mais do que isso, a indicação é a de que tendemos a reconhecer apenas os usos da escrita moldados em valores prévios que são geralmente orientados por um etnocentrismo.
A pesquisa etnográfica empreendida por Street trouxe diferentes modos de conceber o letramento, ampliando nossas percepções e nossa compreensão do(s) mundo(s) da escrita, tanto em termos teóricos quanto em termos metodológicos. Em função desse programa de pesquisa e dos postulados dele derivados, Street muitas vezes foi criticado por promover um relativismo exagerado. Sua brilhante resposta sempre foi a de dizer que ‘colocar-se na perspectiva do outro’ é uma ação (e uma opção) política de ver o mundo sob diferentes olhares e, se ser ‘relativista’ é um adjetivo usado para indicar uma visão que situa o fenômeno em relação a algo, nos seus condicionantes históricos e sociais, sim, ele afirmava ser um relativista com convicção. Eis aí um modelo ideológico em ação, pois desafia o mito da neutralidade e explicita as relações entre linguagem e poder.
Muitos de nós fomos e somos influenciados pelo colega e amigo Brian, um ser humano que gostava da convivência e, mais do que isso, promovia a conexão entre as pessoas. Esteve conosco em várias conversas (as de bastidores e as oficiais) e em vários eventos promovidos pelo Ceale/Fae/UFMG. As conversas, via de regra, eram marcadas pelo desafio intelectual: o de colocar as visões em perspectiva, relativizando as explicações e desafiando as convicções apressadas e limitadas. O seu estilo de intervenção trazia uma marca bastante simpática. Todos nós dizíamos: Brian vai concordar com a sua visão, vai compartilhar o entusiasmo da sua pesquisa e de seus achados. No entanto, aguarde a introdução do BUT (“mas”) ... porque, nesse segundo movimento, certamente a conversa vai se transformar em um debate, e em um debate produtivo, respeitoso, desafiador. Mais uma vez, a emergência de práticas sociais de letramento em que a neutralidade não encontra lugar.
Ao professor, ao pesquisador, ao colega, ao amigo Brian Street, nossa saudade e nosso agradecimento.
* Professor da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisador do Ceale.