Competência na educação

A ideia de competência não é recente na área e levanta várias questões


     

Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 21:37:00

 
Por Natália Vieira
 
Se existe um termo que aparece bastante na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é o de competência. Não à toa, competência é um dos principais conceitos que estruturam as concepções do documento homologado em 2017. Mas, a palavra vem aparecendo há mais tempo em proposições para estabelecer parâmetros do que deve ser desenvolvido no ensino escolar. 
 
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394) definiu no Inciso IV de seu Artigo 9º que a União deve “estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. Segundo a BNCC, “além disso, desde as décadas finais do século XX e ao longo deste início do século XXI, o foco no desenvolvimento de competências tem orientado a maioria dos Estados e Municípios brasileiros e diferentes países na construção de seus currículos”.
 
Para a BNCC, “competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”. Apesar de o conceito abranger aspectos fundamentais para qualquer educação, não é consenso a defesa de um modelo de ensino guiado por competências.
 
Para entender a polêmica, é preciso discutir as origens da ideia de competência. Segundo Maria do Socorro Cavalcante, professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), a questão das competências surge nos Estados Unidos na década de 1960, no âmbito do trabalho e da produção. “Essa noção de competência vem exatamente se contrapor a uma noção de educação enquanto possibilidade de acesso aos bens culturais, historicamente produzidos. Ela vai se referir mais à perspectiva do ‘saber fazer’, que são exigências que o mercado coloca para avaliar, medir até que ponto o trabalhador tem condições de realizar satisfatoriamente determinado trabalho”.
 
Antes disso, o linguista norte-americano Noam Chomsky discutiu a ideia de competência, mas em outra perspectiva, que buscava compreender aspectos da linguagem. “É uma noção de competência na perspectiva da gramática gerativa, em que ele [Chomsky] vai dizer que todo indivíduo já nasce com uma parte do cérebro programada que o capacita a produzir uma série infinita de sentenças, independente ou não das relações sociais que esse indivíduo estabeleça”, explica Maria do Socorro.
 
Mas a noção de competência da LDB tem mais ligação com a perspectiva da produção, segundo a professora, que é “inspirada no ideal da educação do relatório do Jacques Delors [economista e político francês], em que ele coloca que a educação deve se desenvolver na perspectiva de quatro eixos: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Hoje teríamos mais um eixo, que já está sendo discutido, o ‘aprender a empreender’. A partir daí, as reformas da educação, e agora notadamente a BNCC, estão ancoradas na pedagogia das competências”.
 
Para a professora Maria do Socorro, “a escola não tem mais o compromisso de formar o aluno, porque antes se dizia ‘a escola forma para a vida’, então você teria essa formação ampla, que representaria não só o acesso ao conhecimento técnico, mas o conhecimento filosófico, sociológico, psicológico, reflexão crítica, política etc.”. Agora a escola tem, em sua visão, a preocupação em preparar o aluno para a empregabilidade, que significa demonstrar “condições de mobilizar determinados conhecimentos, práticas, para realizar trabalhos que a indústria, a fábrica, o mercado, vai exigir dele”.
 
A avaliação por trás do conceito
 
Além da ocorrência em concepções de ensino, a noção de competência também aparece em perspectivas e avaliações da aprendizagem dos estudantes. No entanto, a professora Kátia Nazareth de Abreu, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que pesquisa nas áreas da psicolinguística experimental e da leitura, afirma que o termo não vem mais sendo usado por essas áreas para descrever o que o aluno compreendeu. “Na literatura mais dos anos 1980, 1990, você vai achar ‘bom leitor, mau leitor, ou leitor competente, leitor incompetente’. Com os estudos mais recentes, a gente já não vê com bons olhos. Então, hoje, para uma tipologia de leitores, a gente não trabalha mais com mau e bom, competente ou incompetente”, afirma. 
 
Kátia explica que as muitas variáveis que interferem no momento de leitura dificultam a atribuição definitiva de competência a um aluno. Por exemplo: “Se eu trabalho com um material de leitura cujo tema faça parte da realidade do aluno, ou de um interesse demonstrado por ele, eu posso ter uma leitura muito mais atenta, um comportamento leitor mais engajado, e se houver alguma dificuldade aí [na leitura], pode estar por conta da complexidade gramatical do texto. Eu não tenho como taxar por um teste de leitura escolar, por exemplo, se esse aluno é competente ou não é competente, justamente porque a psicolinguística vai considerar esses aspectos mais externos, de contextualização, de interesse, de motivação para leitura, de objetivo para leitura”. Para Kátia, “competente fica muito ligado ao ‘ser’ e a gente está entendendo que a leitura está muito mais ligada a um estado, a um objetivo”. 
 
As avaliações sobre a competência muitas vezes podem acabar levando a compreensões limitadas, e até erradas, sobre o que aluno sabe e entende. A professora Kátia tem prestado atenção na compreensão dos enunciados, a partir de exames como o ENEM e o SAEB, ou mesmo os da escola. “O que eu tenho percebido é: o que é para fazer aqui professora? Então, o aluno conseguiu ler o texto, ele entendeu, mas quando ele vai para questão, que no caso da escola é o que vai dar a nota e a noção para o professor sobre se ele entendeu ou não o texto, ele não consegue muitas vezes decifrar o enunciado. Aí o professor explica com as palavras dele, e o aluno: ‘Ah, é isso! Ah, era isso que era para fazer’”, explica.
 
A professora da UERJ acredita que muitas vezes o problema está na indicação de comandos por meio de verbos, como ‘identifique’ e ‘exemplifique’, ou expressões no gerúndio, como ‘complete as orações, evidenciando’, que não necessariamente têm seus significados compreendidos pelos alunos.
 
Ampliar o olhar sobre a situação
 
Para lidar com questões de compreensão, Kátia, que foi durante a maior parte de sua carreira professora da educação básica, acredita que é necessário evitar que os alunos apenas decorem informações. No caso dos enunciados, por exemplo, para evitar isso, ela e sua orientanda de mestrado profissional propuserem aos alunos que elaborassem jogos com manuais de instruções, para que lidassem com verbos. “Eles iam criar o jogo, as regras e fazer um manual. E, no coletivo da turma, um grupo ia jogar o jogo que o outro criou. A gente estabeleceu algumas regras do que deveria ter nesse jogo, e o resto ficou por conta deles. Foi uma experiência ótima, porque eles passaram a usar os verbos, os comandos, e a ver como isso era importante para chegar a um determinado resultado, principalmente para jogar. E jogo é muito do universo deles, então aproveitamos isso”, conta. Para ela, o enunciado escolar deveria ser tomado como um gênero, pois há características que devem ser ensinadas e aprendidas.
 
Outro exemplo que Kátia dá sobre possíveis armadilhas de conclusões a partir de avaliações sobre compreensão do aluno, o que pode acabar levando a precipitações sobre a competência do aluno, é um resultado de avaliação feita pela secretaria municipal no Rio de Janeiro, que apontou que apenas 23% de toda a rede demonstrou entender a diferença entre fato e opinião. “Eu estava conversando com um professor da rede e disse: ‘será que isso foi trabalhado nas aulas, com os alunos, nos artigos, nos textos que foram trazidos? Se isso não foi trabalhado e só foi cobrado, talvez ele não tivesse um conhecimento que permitisse que resolvesse esse tipo de questão. Será que o professor conseguiu mostrar nas aulas as características de um fato e de uma opinião?”, questiona.
 
A professora Maria do Socorro também traz um exemplo de como a interpretação sobre a compreensão do aluno pode ser equivocada. Quando dava aulas no antigo primário, atual Ensino Fundamental I, o uso da cartilha de alfabetização ainda era comum. Nas cartilhas, ela conta, “vinha a letra, uma figura, que representava aquela letra, e o aluno tinha de soletrar a palavra olhando para a figura”. A letra “D” foi representada pela figura de um dado. Ao soletrar, um dos alunos disse: “d-a-da-d-o-do, bozó. Ele não disse dado, aquela representação gráfica para ele não correspondia ao que estava escrito, correspondia à figura que na realidade dele, no interior do estado da minha região, o nome de dado é bozó. Ninguém joga dado, a turma se reúne para jogar bozó.” Na sua avaliação, “ele fez a decodificação, mas isso para ele não representa nada. Ele não sabe o que é um dado. Aí quando ele olhou para a figura, ele leu a figura de acordo com a realidade dele. Isso na época virou chacota. Só depois, muito tempo depois, lendo Paulo Freire, que eu entendi a perspectiva da leitura do mundo que precede a leitura da palavra”, lembra.