Conhecendo o Brasil nativo

O contato com a literatura indígena na infância estimula a aprendizagem da criança sobre a diversidade cultural e étnica do país e auxilia na luta contra a perpetuação de preconceitos


     

Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 22:01:00

 
Por Isabella Lino
 
O livro Tekoa: conhecendo uma aldeia indígena, de Olívio Jekupé, narra a história de Carlos, um garoto da cidade que decide passar as suas férias em uma aldeia. O personagem, ao longo do período de experiência fora da vida urbana, conhece os hábitos cotidianos, tradicionais e religiosos do povo Guarani – etnia da qual o autor descende. Para Olívio, assim como essa, as demais obras infantojuvenis de literatura nativa são de extrema importância para que a criança desde cedo compreenda a realidade dos povos indígenas e inteire-se sobre a origem de uma das bases responsáveis pela formação da identidade nacional. "Eu lancei o livro chamado Tekoa: conhecendo uma aldeia indígena porque as pessoas no Brasil não têm noção da realidade de como que vive o povo indígena", afirma.
 
Os termos literatura indígena ou nativa são utilizados para designar o grupo literário brasileiro ao qual pertencem as obras produzidas por escritores indígenas, que estão veiculadas ao mercado editorial. Nesse conjunto, encontram-se textos que apresentam um caráter singular, tendo em vista que as narrativas refletem os traços culturais e identitários particulares de cada povo que compõe a diversidade étnica brasileira. No entanto, segundo Carlos Novais, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador da literatura indígena, no que se refere às obras de literatura nativa direcionadas ao público infantojuvenil, embora distintas, é possível identificar características que são comuns em sua estruturação, como "a narrativa de menor fôlego e uma linguagem mais afeita a esse público, com a presença, por exemplo, de repetições e paralelismos, uso de orações curtas, presença de adivinhações, invocações místicas, expressões marcadoras de início e fim, coloquialismo e informalidade".
 
Os textos indígenas infantojuvenis abordam, de forma recorrente em suas narrativas, temas relacionados à natureza, aos animais e aos aspectos místicos e religiosos. Estão presentes também, nos enredos, relatos das atividades que fazem parte do cotidiano das aldeias, como a pesca, a caça e o plantio de alimentos, além da descrição de eventos cerimoniais que envolvem cantos, ritos, danças e pinturas corporais. Mas cada um dos assuntos, bem como aspectos, é debatido a partir da perspectiva e ideologia do grupo étnico ao qual o autor ou autora pertence.
 
Nas últimas décadas, algumas obras de literatura nativa também passaram a discutir sobre a vida cotidiana do indígena moderno. Nesses livros, o indígena é retratado em diversos contextos, como no ambiente acadêmico, profissional e político, por exemplo, além de ser enfatizado, por meio da narrativa, o importante papel que as novas tecnologias desempenham no dia a dia das pessoas que optam por morar nas cidades, assim como no daquelas que residem nas comunidades. A representação diversa dos personagens nos livros infantojuvenis busca desconstruir a ideia de que o indígena é um ser que vive isolado, destinado a ficar nas florestas, assim como mostrar uma nova perspectiva na qual ele atua de forma ativa em diversos setores da sociedade. "Eu acho importante mostrar também que o índio não vive só na aldeia; o índio também vem para a cidade. Então essas realidades têm que ser mostradas através da literatura para as pessoas poderem entender e valorizar", defende Olívio.
 
A literatura indígena na sala de aula
 
Os livros presentes no ambiente escolar, em sua grande maioria, ainda abordam a questão indígena a partir de um ponto de vista eurocêntrico, o que pode corroborar para a perpetuação de uma imagem errônea da realidade e da história desses povos, como também contribuir para a manutenção de antigos preconceitos. Por isso, para o escritor Olívio Jekupé, é crucial que as obras literárias trabalhadas em sala de aula sejam de escritores indígenas para que haja veracidade na narrativa e representatividade étnica. "Às vezes tem pessoas que escrevem livros sobre os povos indígenas e elas não escrevem igual a gente vive, porque às vezes elas não moram na aldeia, elas nunca foram em uma aldeia. Então elas colocam características que não têm nada muito a ver com a nossa realidade; por isso que é importante o surgimento dos escritores indígenas", explica.
 
Na tentativa de reverter esse cenário e garantir que a memória e as tradições culturais indígenas sejam repassadas para os estudantes de forma mais efetiva, o ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” tornou-se obrigatório nas instituições escolares públicas e privadas, a partir da instauração da Lei Nº 11.645, em 10 de março de 2008. Para o professor Carlos Novais, essa determinação representa uma conquista para a luta indígena, pois "historicamente, a realidade indígena, quando abordada nas escolas, sempre foi tratada de maneira superficial e equivocada, praticamente por ocasião da data comemorativa do dia do índio". 
 
Após a aprovação da lei, vários projetos foram desenvolvidos com o objetivo de promover a inserção dos textos de literatura nativa dentro do ambiente escolar, como também incentivar a consolidação dos autores indígenas no mercado editorial. O Concurso FNLIJ Curumim, por exemplo, é uma ação realizada desde 2005 pela FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), em parceria com o INBRAPI (Instituto Indígena Brasileiro), que seleciona e premia anualmente textos que relatem sobre atividades e projetos voltados para o uso pedagógico de obras indígenas em sala de aula, produzidos por professores, educadores e bibliotecários. Outro que se destaca é o Concurso FNLIJ Tamoios, um projeto criado em 2004 destinado a autores indígenas, que premia textos literários originais e inéditos, em prosa ou poesia. 
 
O escritor Olívio Jekupé ressalta que, mesmo com a mudança efetuada nos Parâmetros Curriculares Nacionais, as instituições educacionais presentes nas aldeias, em sua maioria, não possuem acesso aos livros infantojuvenis de autoria dos próprios indígenas. Isso ocorre porque as Secretarias de Educação estaduais e municipais, em concordância com o Ministério da Educação, encaminham para as escolas obras clássicas e famosas dentro do meio literário brasileiro, ao passo que os textos indígenas, por ainda estarem em processo de popularização, não são adicionados na lista de materiais destinados às comunidades. A presença desses livros em escolas de aldeias é fundamental para que professores tenham mais facilidade de trabalhar com as crianças termos e conceitos a partir de histórias e ilustrações que apresentem traços culturais, históricos e comportamentais que permitam que ela se identifique e se sinta representada.
 
Para o professor Carlos Novais, os avanços proporcionados pela Lei Nº 11.645, embora perceptíveis, ocorrem de forma lenta e gradual. A transformação total desse cenário depende da adoção de medidas mais incisivas: "é preciso, por exemplo, estabelecer propostas curriculares mais nítidas, tanto para os cursos de formação de professores, quanto para a educação básica, destacando-se o necessário diálogo intercultural, e promover a produção de materiais didáticos mais adequados. Paralelamente, se faz importante a organização de cursos de formação continuada, a promoção de oficinas específicas sobre o tema, como forma de ampliar os conhecimentos na área", sugere.
 
A realidade do escritor e da escrita indígena
 
O preconceito contra os povos indígenas, infelizmente, ainda é uma realidade na sociedade brasileira. No que se refere ao mercado gráfico-editorial, os estereótipos do índio como sendo uma pessoa selvagem, menos inteligente do que o “homem branco”, contribuem para que as obras produzidas por autores indígenas tenham o seu valor literário questionado. "Teve uma vez, quando eu estava dando palestra, que uma moça perguntou se era eu mesmo que escrevia essa história, se não foi um antropólogo que escreveu e deu pra mim e aí eu só uso o nome", exemplifica Olívio Jekupé.
 
Além disso, segundo Olívio, algumas editoras não consideram as temáticas culturais indígenas um assunto atrativo para o público consumidor. "A questão indígena não é muito valorizada, então é difícil publicar livros", relata. Assim, muitos escritores precisam recorrer ao modo de produção independente para garantir que seus livros sejam distribuídos e comercializados na sociedade. 
 
Mesmo com os desafios, a literatura nativa vem se estabelecendo no cenário editorial brasileiro. A tradição autoral infantojuvenil já conta com uma considerável quantidade de nomes, como Aline Rochedo Pachamama, Auritha Tabajara, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Elias Yaguakãg, Ely Macuxi, Graça Gaúna, Julie Dorrico, Kaka Werá, Kanatyo Pataxó, Luiz Karaí e Olívio Jekupé. Com suas obras, esses escritores buscam disseminar e ampliar os conhecimentos sobre os povos indígenas e ensinar as novas gerações sobre a importância do respeito e da valorização da diversidade étnica. "Eu acho que nós, escritores, temos uma grande missão, que é conscientizar a sociedade através da literatura nativa e falar um pouco sobre o nosso povo", complementa Olívio.