Consciência morfológica, reflexão e alfabetização

Trabalhar essa habilidade pode auxiliar os alunos na hora da alfabetização e funcionar como um efeito facilitador na hora da escrita


     

Letra A • Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018, 15:50:00

 
Por Teresa Cristina
 
‘Laranjeira se escreve com j ou com g?’: dúvidas de ortografia como essa podem, certamente, surgir nas crianças quando estão aprendendo a ler e escrever. Para os professores, surge a problemática de qual caminho seguir para ajudá-las. A professora de Ensino Fundamental Maíra Cristina de Souza, do município de Sarzedo (MG), acredita que um bom caminho é trabalhar a consciência morfológica para sanar dúvidas como essa: “O trabalho pode partir da reflexão da escrita primitiva da palavra, por exemplo, a palavra ‘laranjeira’ (...) tendo por base que a palavra (...) é uma variação da palavra ‘laranja’, não gera dúvidas na escrita do nome da árvore”, disse.
 
A consciência morfológica é definida pela pesquisadora e diretora do Instituto de Psicologia da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Márcia Maria da Mota, como “a habilidade de refletir sobre os morfemas das palavras (...) que são as menores unidades de significado de uma palavra”. Márcia introduz, também, uma forma de como a habilidade pode auxiliar no ensino: “Os morfemas têm estabilidade ortográfica, dessa forma [a consciência morfológica] auxilia a criança a escolher a grafia de palavras com grafias ambíguas, açúcar e açucareiro, por exemplo”. Essa habilidade faz parte de um conjunto de consciências que são indicadas como facilitadoras necessárias na hora de aprender a ler e escrever: a fonológica, a sintática e a morfológica.
 
A fonológica diz respeito à relação entre a escrita e o som e a reflexão sobre o som das palavras. Por exemplo, “saber que a palavra ‘bola’ rima com ‘cola’, ou saber que se tirarmos o primeiro som da palavra ‘sala’ sobra ‘ala’’, faz parte da consciência fonológica”, esclarece Márcia. Já a sintática seria a habilidade de refletir sobre a estrutura gramatical das sentenças. Ainda segundo Márcia, a consciência sintática é confundida, por vezes, nos estudos (e pelos estudantes) com a morfológica, por exemplo, quando há a confusão entre a estrutura sintática das sentenças com a estrutura das palavras, em que entram os morfemas. “É difícil separar totalmente os aspectos sintáticos dos semânticos, mesmo quando estamos analisando as palavras. Muitos se referiam às tarefas de morfologia como morfossintáticas. Hoje, as pesquisas usam o termo morfologia e a consciência sintática”, completa a pesquisadora.
Efeito facilitador
Para Raquel Evangelista, professora alfabetizadora na Escola Estadual Luíza dos Santos Ferreira e formadora local do PNAIC da rede estadual e municipal em Passabém (MG), o desenvolvimento da consciência morfológica facilita o aprendizado da língua portuguesa, pois “refletir sobre os morfemas das palavras (...) proporciona a compreensão da formação da palavra e sua estrutura. Esse trabalho propiciará o desenvolvimento tanto da leitura quanto da escrita”, afirma.
 
A capacidade de refletir sobre a composição das palavras pode auxiliar bastante na escrita de palavras com grafias duvidosas, funcionando como um ‘efeito facilitador’, aponta Márcia Mota. Além disso, a pesquisadora da UERJ afirma que a habilidade auxilia no reconhecimento de palavras: “Quando encontramos uma palavra que não conhecemos, podemos inferir o significado dela a partir de outras que já conhecemos e buscar grafias possíveis para essas palavras”. A maior ajuda da consciência morfológica na hora de adquirir a escrita, porém, seria na escrita de palavras complexas, mas isso também teria a ver com a habilidade de reconhecimento de palavras que a morfologia proporciona.
Quando e como ensinar
Quanto à idade indicada para se introduzir a consciência morfológica, não há um consenso. Alguns, como a professora Maíra, acreditam que ela deve ser introduzida cedo. “Desde os primeiros contatos com a língua escrita é possível se pensar na reflexão desta e uma dessas reflexões é a consciência morfológica”, afirma a professora de Sarzedo. Já outros acreditam que não há uma idade certa: “Vai depender do nível de aprendizagem dos alunos”, afirma Raquel. Para Márcia, algumas habilidades precisam ser trabalhadas primeiro, como a fonológica: “Uma aprendizagem mais explícita (da consciência morfológica) seria melhor depois que a criança já sedimentou as regras de correspondência letra e som”.
 
Apesar de a consciência morfológica auxiliar na alfabetização, essa habilidade é mais visada e utilizada na prática mais adiante, explica a professora Raquel: “Sua contribuição para a leitura e a escrita tende a se tornar mais expressiva quando o aprendiz se depara com desafios que demandam mais reflexão sobre a língua, por exemplo, sobre os fatores que orientam a escrita ortográfica”.
 
Entretanto, introduzir essa habilidade no cotidiano escolar não precisa ser complicado. Deve-se mostrar para os estudantes que as palavras são compostas por morfemas e que alguns se relacionam. Isso pode ser feito de algumas maneiras, como a tradicional, por meio de aulas didáticas e com atividades de reconhecimento. É preciso ter alguns critérios em mente na hora de realizar esse trabalho. A pesquisadora Márcia Mota destaca um deles: “O mais importante é começar pelo limite das palavras e não por unidades, como vogais temáticas”.
 
É possível, também, facilitar esse processo de aprendizagem indo além do tradicional, por meio de jogos pedagógicos. Eles contribuem para o entendimento por se tratarem de recreação e entretenimento, o que aproxima a criança do saber pela diversão. A alfabetizadora Raquel comenta sobre um desses jogos: “Posso citar, por exemplo, o jogo ‘palavras dentro de palavras’ que, de maneira lúdica e interativa, desperta o olhar à derivação e à estruturação composicional das palavras, favorecendo principalmente a reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita, ou seja, os princípios que constituem a base alfabética”. Essas brincadeiras podem vir acompanhadas de premiações e competições saudáveis, o que, muitas vezes, ajuda no engajamento dos alunos nos jogos e no material ensinado.
 
Depois de introduzida a habilidade, é hora de verificar e reconhecê-la nos estudantes. A pesquisadora Márcia dá uma dica sem complicações: “Uma maneira simples é perguntar se duas palavras são relacionadas, por exemplo, ‘maio’ e ‘maionese’ e observar a consistência da grafia das crianças também”.
O caminho à frente
A pesquisa sobre a relação da consciência morfológica com a alfabetização tem crescido, mas ainda são poucos os estudos, além do fato de que, em sua maioria, são sobre a língua inglesa - que apresenta diferenças consideráveis na morfologia das palavras em relação ao português e espanhol. Márcia Mota acredita que isso possa ser justificado pela falta de foco no papel que habilidades de reflexão sobre a língua, como consciência fonológica e morfológica, têm. Ela fala ainda sobre o atraso em se perceber as especificidades de cada uma: “Demoramos algum tempo para entender que não é uma coisa ou outra, mas um sistema complexo que envolve várias habilidades. Creio que isso atrasou um pouco o desenvolvimento de pesquisas nessa área”.
 
Para a pesquisadora Márcia, trabalhar com a consciência morfológica na sala de aula é dar mais um caminho para os alunos aprenderem. “Creio que acrescenta mais uma estratégia para as crianças lerem e escreverem palavras novas”, completa. Além disso, como afirma a professora Raquel, é necessário trabalhar as consciências em conjunto para adquirir o sucesso desejado: “Precisamos desenvolver práticas em que os alunos compreenderão a nossa língua portuguesa, explorando tanto a consciência fonológica quanto a morfológica para aquisição e/ou aperfeiçoamento do vocabulário, da leitura e da escrita de palavras”.