Crônica: O primeiro livro


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 17:30:00

Por Graça Paulino

Hoje me parece bem complicado aprender a ler. Multiplicaram-se os métodos, as escolas particulares disputam qual consegue alfabetizar mais cedo seus alunos, há muitas imagens e tecnologias sofisticadas que deveriam ajudar. Mas nunca vi tantas crianças com preguiça de ir à aula, e, quando vão, ficam brincando ou brigando, sem prestar atenção ao que a professora tenta ensinar. O que está escrito deixou de ser um objeto atraente, algo a decifrar com prazer. Deve ter sido sempre assim: aprender a ler é importantíssimo para uns e um sofrimento para outros.

Não foi sofrimento para o escritor José Paulo Paes. Ele via o avô lendo no jornal o que para ele eram marcas sem sentido. Quis também dar sentido àquelas pequenas formas pretas, que tanto interessavam ao velhinho. Passou a ficar mais tempo perto dele, enquanto na escola a professora lentamente o introduzia nesse mundo da escrita. Um belo dia, conseguiu ler as letras maiores, tentou as menores e entendeu tudo: o Natal se aproximava e presentes eram comprados. Passou os olhos pelas outras notícias, viu que o jornal interessava ao avô porque trazia informações que ele não tinha.

Ficou tão feliz que comentou com um colega o que acontecera: “agora sei ler!” Mas o outro, que ainda não penetrara nesse labirinto, ficou com inveja e disse que, se fosse inglês, ele não saberia. Entre o desânimo e a felicidade, José Paulo escolheu a segunda e logo se pôs a estudar a escrita de outras línguas. Tornou-se um leitor poliglota, um poeta, um tradutor dos bons.

Eu também passei por uma experiência que me levou a progredir na leitura. Estudava no Grupo Escolar Padre Eustáquio e a professora era brava. Prestava muita atenção em tudo que ela falava e mostrava sobre a vida de Lili, uma menina bem arrumada, que, assim como eu, tinha um cachorrinho. Estava sempre sorrindo para nós, e a professora ia lendo cada linha do cartaz. Mudávamos as sílabas de lugar para formar outras palavras. Eu gostava muito desse jogo. Um dia percebi que, enquanto a professora lia, eu lia com ela. Quando se calou eu continuei olhando para o cartaz e sabia o que estava ali escrito.

Já começava a achar a história da Lili muito bobinha, mas, graças a Deus, chegou o fim do ano. A professora apareceu com um tanto de livrinhos e foi dando de presente um para cada aluno. Eram histórias diferentes. Meu livro se chamava Os dois corcundinhas e tinha uma dedicatória: “Para Maria das Graças, parabéns por ter aprendido a ler. Com carinho, D. Julieta.”

O livrinho não era fácil, pois vinha de Portugal e tinha palavras que eu não conhecia. Mas a história me encantou, senti-me muito importante, e, dali para frente, quando perguntavam o que eu queria ganhar, respondia: “um livro”.  Minha mãe me levava ao sebo de Seu Amadeu para escolher um livro, todo ano, no Natal. Ele ajudava a escolher livros ótimos. Outros me davam brinquedos e roupas. Hoje, quem ainda está vivo me pede desculpas, por não ter dado valor a livros. Depois, descobri que o colégio novo, o Municipal, tinha uma boa biblioteca. E alguns meninos vizinhos também. Mas nunca me esquecerei daquele meu primeiro livro, que ganhei de presente da professora. Abriu as portas de um outro mundo para mim, o mundo mágico da leitura literária.

Não me tornei poeta, não aprendi direito línguas estrangeiras, como José Paulo Paes. Mas se uma criança distraída de hoje aprendesse a ler e ganhasse um bom livro – só seu, só seu – talvez buscasse outros, mais outros, mais outros, e poderia ser feliz na literatura, como sou. Estou indo à literatura em inglês, agora, aos 67 anos. A tempo.