Crônica: O que significa isso?
Letra A • Quarta-feira, 27 de Julho de 2016, 10:40:00
Por Carlos Augusto Novais
Traços, linhas, curvas, cores, imagens, formas, manchas, marcas, sinais, senhas, acenos, borrões, máculas, falhas, frestas, fímbrias, claros, vestígios, trilhas, pegadas, nódoas, riscos e mais riscos... No princípio, o precipício. O aleph. Na página desmedida, luz e sombra. “Seria o branco da folha, / luz que parece objeto? / Quem sabe o cheiro do preto, / que cai ali como um resto? / Ou seria que os insetos / descobriram parentesco / com as letras do alfabeto?”, interroga Leminski, o samurai malandro de Curitiba. No começo, a letra: A. Em meu nome, ela aparece em cada um dos prenomes e no sobrenome. O abecedário. Consoantes. Vogais: da arara ao urubu. Na ficha a ser transcrita, o nome da primeira professora, o nome da primeira escola. Grupo Escolar Afonso Pena, Santa Bárbara, MG. Caixa alta, caixa baixa. Maiúsculas e minúsculas. Letra cursiva, letra bastão, letra de forma. O caderno de caligrafia. As primeiras leituras.
Então, não se lê apenas o que está escrito? O sentido não se desvela? Não se revela? O sentido falta? O sentido inunda? Vaza pelo texto? Transborda pela página? Pela tela? Pelos painéis? Pela pele? Pelos pelos? Pela parede? Pelas faixas? Pelo muro? Pela paisagem? Escorre, como o livro de areia borgeano, entre os dedos? Entre os desejos? Entre Eros e Thanatos? Entre... sempre entre? Entre o destino e a ausência de endereço? Entre o conforto da sala e o risco da rua? Entre a coragem e o medo? Entre intenção e gesto? Entre... sempre entre? Entre o significante e o significado? Entre a fala e a escrita? Entre a língua e o mundo? Entre... sempre entre? Entre o mote e a glosa? Entre a metáfora e a metonímia? Entre a prosa e a poesia? Entre... sempre entre? Atrás, ao lado, na frente, em cima, embaixo, entre? Entre a letra e a imagem? Entre o traço e o silêncio?
Silêncio! A página em branco! O sentido na ausência! Ler pelo não! Escrever pelo avesso! Como dizia o poeta dadamídia Marcelo Dolabela, “primeira poesia do ano / escrever / com a borracha”! Como o texto lipogramático de George Perec, La Disparition (1969), elaborado sem a utilização da letra “E”, a mais frequente na língua francesa. Restrições! OULIPO – Ouvroir de Littérature Potentielle. Roteiros... roteiros... roteiros. Antropofagia. Sua transcriação para o castelhano omitiu a letra “A”, a mais comum naquele idioma. Desaparição, sumiço, perda, subtração, dispersão, desfazimento, ruína, descaminho, extravio.
No precipício, o princípio. Vertigens. O sentido que se constrói. O mundo que se produz. A vida que se cria. Autopoiesis. The Factory, Andy! Lemisnski arremata: “ele [o sentido] não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação. Só buscar o sentido faz, realmente, sentido. Tirando isso, não tem sentido.”. Alguns parágrafos depois, aqui estou, poeta fabbro, redigindo a mim mesmo, gritando “z” para todos os zeuzes, indagando...