Crônica: Por mais imaginação


     

Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 16:37:00

Por Maria Luísa M. Nogueira

O livro Atlas do corpo e da imaginação, de Gonçalo Tavares, escritor português, inicia-se com a seguinte frase: “Começar aqui é interromper uma tarefa, noutro lado, claro.” Cada vez que começamos alguma coisa, perdemos algo. Na literatura e na vida é assim. Há sempre algo inconcluso, algo que deixamos para trás. O começo do caminho, a partir do diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo/TEA, não é nada fácil. É preciso abraçar novos planos. Não são projetos e planos melhores ou piores, mas são de fato diferentes daqueles que vêm no pacote disponível e pronto, com suas próprias contradições, que é o da maternidade neurótica, típica, narcísica, dentro da norma. E, para nós, que estamos fora desse pacote, lidar com essa novidade é difícil, bem como lidar com tudo o que precisa ser pensado e realizado, incansavelmente decidido, e que é muitíssimo trabalhoso.

Venho enchendo dois caderninhos com várias perguntas, nomes de especialistas, instituições, telefones, endereços. Contas. Dicas, orientações. Livros. Dúvidas. Esses caderninhos viraram uma prateleira na estante do escritório, com vários livros, expulsando umas coisas antes mais queridas. Nasceu uma pasta no computador com um monte de artigos que depois viraram várias subpastas: intervenção precoce; inclusão; família; leis. Uma pastinha, “políticas públicas”, tem dificuldade de crescer. O encontro com o Transtorno do Espectro do Autismo virou meu currículo Lattes de cabeça para baixo. O encontro com meu filho – lindo, amado, adorável, desafiador – mudou minha vida de um jeito que, realmente, quem não tem um filho diferente do esperado não tem a mínima ideia. Não tem mesmo.

O encontro com meu filho mudou também a vida de um monte de gente: o pai, os avós, alguns amigos. Mudou o caminho de estudantes e de uma professora que se encontraram academicamente trabalhando em meio aos sorrisos, gargalhadas e bagunças de um menino feliz. É tão bonito ver a potência da intimidade com a diferença, mesmo sendo tão insistentemente difícil. Tudo isso mudou para melhor. Porém, ainda falta muito para incluir a escola nesta lista de mudanças.

“Nossa escola não é inclusiva.” Venho criando uma coleção particular de barbaridades que escuto ao procurar escola para meu filho. Além de ilegal, esse tipo de postura é, no mínimo, um desperdício. Pois é um privilégio, para as crianças típicas, e para seus pais, o convívio com a diferença de forma aberta e plural no cotidiano escolar.

É sintomático usar a palavra barbaridade para falar da nossa dificuldade em lidar com a diferença. Nosso projeto de sociedade remonta à emergência da modernidade, justamente quando produzimos a experiência da subjetividade na relação com a desqualificação do outro, diferente. Nós, civilizados; eles, bárbaros. Ainda não sabemos viver fora dessas caixinhas. Não é à toa que muitos pediatras e psicanalistas tendem a recusar as preocupações de mães e pais, e vão adiando o diagnóstico – não querem ser mensageiros da inexorável diferença. Isso, no entanto, gera uma ansiedade enorme na família, cria falsas esperanças, atrasa a estimulação, desperdiçando um período precioso e, por fim, impede o encontro da mãe e do pai com o filho real que está ali.

O outro caminho, do consentimento e do desafio da/na diferença, exige que os profissionais coloquem em ação constante a invenção de soluções, materiais, reinventem suas fórmulas de ensino. As pessoas dentro do TEA, como todos nós, são únicas. Mas sua unicidade não se afirma por si mesma; depende de intervenções, de artesanias que alarguem o mundo para essas pessoas.

Existe uma relação entre criatividade/abertura para o mundo e o convívio íntimo com a diferença. Sim, já o sabemos: todo mundo é diferente etc. etc., mas existe uma experiência radical de ter a diferença como algo ubíquo na sua vida. Uma experiência que tem de tudo, menos banalidade. No livro Longe da Árvore: pais e filhos em busca de identidade, o jornalista Andrew Solomon sugere que “[...] a intimidade com a diferença promove a conciliação”. O amor na diferença exige imaginação, abrir mão de alguns narcisismos, e força. A existência de crianças como meu filho nos transforma, para melhor. E nos lembra que é preciso tranformar o mundo.