Dados da pandemia: os impactos da Covid-19 na Educação

Pesquisas indicam que o período de aulas remotas teve efeitos negativos sem precedentes na alfabetização de crianças e contribuiu para o aumento da desigualdade


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 11:24:00

Por Luiza Rocha

2,4 milhões. Esse é o número de crianças entre 6 e 7 anos que não estão alfabetizadas no Brasil em 2021, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). Para fins de comparação, em 2019 esse número era de 1,4 milhões, o que representa um crescimento de 66,3%, de acordo com o levantamento feito pela ONG “Todos pela Educação”, publicado em uma Nota Técnica. Esse aumento é o maior registrado nos últimos dez anos da pesquisa e corresponde exatamente ao período de aulas remotas durante a quarentena devido à pandemia de COVID-19.

Para o professor emérito da Faculdade de Educação da UFMG e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), José Francisco Soares, esses dados são fáceis de entender. “As crianças que estavam no primeiro e no segundo ano, elas não se alfabetizaram, porque você não alfabetiza online, a alfabetização exige o contato da professora com os estudantes”, explica. O professor afirma que os números levantados na pesquisa não só estão corretos, como o efeito será muito maior: “Nós estamos diante de um processo de exclusão de toda uma geração de crianças”.  

A professora da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), Maria do Socorro Nunes Macedo, concorda que a não alfabetização na idade adequada pode comprometer todo o processo subsequente de escolarização. Maria do Socorro coordena o coletivo “Alfabetização em Rede” (ALFAREDE), composto por cerca de 117 pesquisadores de 29 universidades brasileiras que, durante os anos de 2020 e 2021, buscou investigar como se deu o processo de alfabetização com o ensino remoto nas escolas públicas do país. De acordo com a professora, a partir dos dados coletados pelo grupo, é possível estabelecer uma relação direta entre as aulas não presenciais e o alto número de crianças que não sabem ler ou escrever. “As crianças que mais apresentam dificuldades na alfabetização são aquelas que foram completamente alijadas do processo. Mesmo as crianças que tiveram acesso permanente ao ensino remoto também não se desenvolveram como poderiam, uma vez que é muito improvável que se consiga alfabetizar uma criança remotamente”, confirma.

A Pnad Contínua é uma pesquisa declaratória, o que significa que uma pessoa do domicílio responde pelo restante da família. Por isso, é importante que existam outras investigações que busquem informações diretamente nas escolas, com docentes e alunos, como mais uma forma de confirmar se o que foi declarado pelos responsáveis dessas crianças corresponde à realidade. Os professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro Mariane Koslinski e Tiago Bartholo realizaram dois estudos que seguem nesse sentido. O primeiro, intitulado “O impacto da pandemia da COVID-19 no aprendizado em bem-estar das crianças”, foi feito em escolas da rede particular e conveniada do Rio de Janeiro e o segundo, chamado “Aprendizagem na Educação Infantil e Pandemia: um estudo em Sobral/CE”, foi realizado em escolas da rede municipal de Sobral, no interior do Ceará. Ambos acompanharam grupos de crianças do segundo ano da pré-escola durante 2019 e 2020, no Rio de Janeiro, e em Sobral, também em 2021, verificando aspectos cognitivos (linguagens e matemática), de aptidão física e habilidades motoras – no segundo estudo, foram acrescidas medidas socioemocionais. O que se constatou foi que, em 2020, as crianças aprenderam em um ritmo mais lento do que em 2019 e, mesmo que as duas pesquisas tenham sido feitas em contextos sociais diversos, os resultados seguiram um direcionamento parecido. “Nos dois contextos, mesmo naquele em que você não tem crianças em situação de maior vulnerabilidade social, mesmo nos contextos em que você teve atividades de ensino remoto com oportunidades de interação com atividades síncronas e assíncronas, enfim, mesmo num contexto em que você tem toda a infraestrutura necessária, ainda assim, a gente encontrou impactos negativos”, explicita o professor Tiago Bartholo, um dos autores da pesquisa.

Na sala de aula, os efeitos do período de ensino remoto, durante a fase de alfabetização, também são palpáveis. Professora da turma do segundo ano do Ensino Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG, Kely Souto afirma que o número de alunos que não sabem ler e escrever na turma de 2022 é cerca de quatro vezes maior do que a média dos anos anteriores. Além disso, a docente observa que algumas aptidões esperadas para crianças na faixa etária da turma ainda não estão completamente desenvolvidas. “Tem algumas habilidades que a gente já pressupõe [que a criança já saiba], por exemplo, que é o pegar no lápis, que é usar o caderno, que é saber usar a pauta do caderno, o movimento do traçado das letras, colar, recortar, que faz parte de todo um contexto de uma prática (...). Então a gente tem gasto um tempo pra focar habilidades que não foram trabalhadas no presencial”, exemplifica Kely. Para ela, uma das principais limitações do ensino remoto foi a interação dela com os alunos e entre eles mesmos, já que uma parte importante do processo de aprendizado é a troca de conhecimentos e dúvidas entre os próprios colegas.

A interação presencial, que permite uma intervenção imediata, é parte essencial de uma alfabetização efetiva, como explica o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Artur Gomes de Morais. “Além de aprender com o que os colegas ao seu lado fazem, observando, trocando ideias etc., a criança pode ser assistida pela professora que é quem tem condições de, no momento exato e adequado, ver, por exemplo, que aquele aluno ou aquela aluna está precisando refletir sobre a primeira sílaba de tal palavra... e que se ele relembrar que o nome do colega ao lado começa exatamente igual, isso vai ajudá-lo.” O professor afirma que esse tipo de diagnóstico instantâneo não pôde acontecer nem mesmo nas escolas que dispunham dos melhores recursos tecnológicos para as aulas à distância. 

Para além da alfabetização, outra grande preocupação que o período de aulas remotas trouxe à tona é em relação aos aspectos socioemocionais. “O que a gente está vendo de relato de algumas escolas, às vezes por iniciativa da escola e às vezes até pela pressão dos pais, é pensar só no conteúdo, o conteúdo que foi perdido. Só que a gente sabe, por exemplo, que o desenvolvimento socioemocional das crianças está muito associado a um desenvolvimento cognitivo”, explica a professora Mariane Koslinski (UFRJ). Ela completa dizendo que, se não houver um acolhimento inicial da escola, buscando retomar o desenvolvimento socioemocional para que a criança se ambiente novamente naquele espaço físico, dificilmente o aprendizado voltará a ser como antes da pandemia. Para Kely Souto (CP - UFMG), um dos maiores desafios tem sido desenvolver o pertencimento de grupo entre as crianças, depois que elas passaram dois anos vivendo realidades muito diferentes umas das outras em suas casas. “Elas chegam com estranhamento daquele espaço escolar. Então, imagina uma criança por quase dois anos sem conviver com outras. Elas se estranham o tempo todo”, aponta Kely.

A aptidão física também foi outro aspecto afetado. No relatório mencionado por Mariane, ela ressalta que 50% dos pais entrevistados declararam que as crianças aumentaram o tempo de tela e diminuíram as atividades físicas. Kely Souto também destaca isso na sua turma. “Elas machucam mais; as crianças estão se machucando mais no segundo ano. Elas ralam, elas trombam. E a gente vê, porque elas estão explorando um espaço no segundo ano pela primeira vez na escola”, completa a professora do Centro Pedagógico da UFMG.

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