Dados da pandemia: os impactos da Covid-19 na Educação | parte 3


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 12:24:00

Trabalho de recuperação e perspectivas futuras

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) define que o primeiro e o segundo ano do Ensino Fundamental devem ter como foco a alfabetização, para que “os alunos se apropriem do sistema de escrita alfabética de modo articulado ao desenvolvimento de outras habilidades de leitura e de escrita e ao seu envolvimento em práticas diversificadas de letramentos”. Porém, diante da realidade imposta pelo período pandêmico e as aulas remotas, professores têm visto a necessidade de adaptar o conteúdo, muitas vezes tendo que retomar conhecimentos que, em teoria, deveriam ter sido desenvolvidos nos anos anteriores. “Se eu já partia lá para escrita, hoje eu estou lá na oralidade construindo com elas [as crianças] quais são as ideias, registrando um quadro… outro colega vem, complementa, vem o outro, conta o texto, para aí a gente começar”, conta Kely Souto (CP-UFMG). A professora confessa que não tem conseguido, ainda, trabalhar conteúdos que são previstos na Base para a turma do segundo ano, mas esclarece que esse não é seu objetivo no momento, e que pode ser perigoso ficar se prendendo a um ideal do que a criança deveria saber, sendo melhor trabalhar com o que elas já sabem no presente e caminhar no ritmo adequado. “Não dá para a gente atropelar o processo das crianças e de maneira ansiosa também perder aquele prazer do processo de alfabetização”, enfatiza.

Crítico à BNCC desde sua promulgação, o professor Artur Gomes de Morais acredita que a proposta da Base falha em “garantir às crianças de 4 e 5 anos uma iniciação à reflexão sobre palavras, sequer sobre os nomes próprios, que as ajude a avançar em sua compreensão do sistema de escrita alfabética”. Dessa forma, para o pesquisador, orientando-se somente pela BNCC, o processo de alfabetização já estaria comprometido. Artur propõe que, independentemente da pandemia, é preciso pensar a médio e longo prazo, e assegurar um ciclo de alfabetização e um cuidadoso letramento, com “um aprendizado sistemático das relações entre fonemas e grafemas do português, assim como de todas as estruturas silábicas das palavras de nossa língua, além de uma introdução à norma ortográfica, pautada na curiosidade e na reflexão”. Neste momento, para começar a se pensar em uma recuperação, o pesquisador afirma que os professores devem ajustar o ensino de acordo com o que cada grupo de alunos já sabe ou não, e que para isso são necessários diagnósticos periódicos, de preferência, mensais. Essas avaliações devem abarcar não somente o domínio da escrita, mas também as capacidades de leitura e produção de textos infantis.

Maria do Socorro Nunes concorda que a primeira estratégia é um bom diagnóstico, para que se possa planejar um trabalho de alfabetização com foco na escrita enquanto cultura e não um código abstrato. “É muito significativo que a criança possa perceber que a língua escrita não é algo distante dela, ao contrário, está presente nas relações sociais”, aponta. A professora Kely Souto tem aplicado esse princípio em sua sala de aula. Sempre que possível, ela tenta associar a leitura e a escrita com atividades que façam sentido no cotidiano da criança, como escrever um cartão para a família de um aluno que acabou de ganhar uma irmã. Kely também diz que mudou um pouco sua metodologia, tendo que se adaptar ao comportamento que os alunos apresentavam, utilizando ferramentas que deixassem as aulas mais dinâmicas e prazerosas, como livros literários com temática de animais, de que os estudantes mostraram gostar bastante, além de, dentro do possível, realizar atividades fora da sala de aula.

Francisco Soares (UFMG) também reforça que, juntamente às ações dentro das escolas, é preciso de uma atuação no sistema, que almeje a diminuição da desigualdade no aprendizado. O professor chama a atenção, ainda, para o processo de diagnóstico dos alunos. Para ele, avaliações que se reduzem a questões de múltipla escolha, como algumas das que são promovidas pelo governo, não são efetivas em alcançar corretamente o nível real de aprendizado do aluno e cita como exemplo de trabalho bem sucedido o Projeto Alfaletrar, criado pela professora Magda Soares e implementado em Lagoa Santa - MG. “Então, se nós queremos que a criança seja alfabetizada no segundo ano com oito anos, nós teríamos que discutir quais textos a criança de oito anos deve estar lendo. Nós vamos ter diversidade, mas eu teria uma complexidade, um crescendo de complexidade. Essa discussão está fora das avaliações que se resumiram a questões de múltipla escolha”, destaca o professor, que completa, “se eu preciso do dado, para me dar a boa política, o dado precisa de avaliação, então nós estamos precisando de outras avaliações”. 

Com a volta das aulas presenciais, o esperado é que aconteça uma melhoria nos números da alfabetização. Mas, para que essa melhoria seja de fato efetiva e para que as crianças não sejam mais prejudicadas em seu percurso escolar, são necessárias medidas dedicadas exclusivamente à recuperação do que não foi feito durante o período de aulas remotas. “É possível recuperar. Mas a gente precisa de planejamento, precisa de bons programas e precisa de aporte de recursos. Se as redes não se atentarem para isso, daí esse problema vai se agravar sim, vão se agravar as desigualdades que a gente já tem no Brasil”, alerta a professora Mariane Koslinski. Apesar desse trabalho ser necessário e urgente, a professora também lembra que a recuperação completa não acontecerá de imediato. Para Kely Souto, a meta é que as crianças da sua turma do segundo ano saibam ler e escrever antes de passar para a próxima etapa; porém, ela não pretende apressar esse processo. Para ela, as crianças não estão defasadas, porque elas não tiveram a vivência e o ensino adequado no período remoto; portanto, agora é o momento de oferecer isso a elas. “A gente tem uma ansiedade com o tempo da alfabetização, mas é algo que eu tenho que estar trabalhando para que as crianças gostem da língua, nessa escolarização toda pela frente, para a vida. Se eu ficar preocupada com o que vai ser no futuro, às vezes eu mato o meu presente”, reflete Kely. A professora Maria do Socorro acrescenta que existem, sim, consequências, mas não acredita que são definitivas e que as crianças vão continuar aprendendo “desde que a escola consiga parar e escutá-las, como nos ensina Paulo Freire”.

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