David Bloome: Linguagem é sobre emoções

O professor da Universidade Estadual de Ohio reflete nesta entrevista ao Letra A sobre o sistema educacional dos EUA, discutindo letramento, segregação, formação e papel do professor em seu país


     

Letra A • Sexta-feira, 13 de Julho de 2018, 13:15:00

 
Para dizer sobre práticas de escrita e de leitura, David Bloome não se nega a falar também sobre emoção, imaginação e sobre o amor. Nesta entrevista ao Letra A, concedida durante o VI Colóquio Internacional sobre Letramento e Cultura, na Faculdade de Educação da UFMG, o professor da Universidade Estadual de Ohio apresentou aspectos do sistema educacional dos Estados Unidos, aproximando temas polêmicos, como a segregação nas escolas, da reflexão sobre letramentos: “já estive em um bom número de salas de aula onde vi professores fazendo o mesmo tipo de ensinamento: engajando seus alunos a contestar pressuposições dominantes e os ajudando a adquirir uma visão melhor de si e de suas comunidades”. Com exemplos de práticas letradas em salas de aula nos EUA, Bloome reflete também sobre o papel do professor, destacando a sua relevância política na comunidade: “Trata-se de criar algum tipo de compromisso. Não apenas com a criança, mas com o mundo onde essa criança vive”.
 
Por J. Pedro de Carvalho
 

Em relação à alfabetização e ao letramento, e às suas práticas formais ou informais, você poderia dizer quais seriam os princípios, as estratégias ou mesmo os desafios importantes no contexto de seu país?

Em vez de letramento ou de leitura e escrita, falemos sobre o uso da linguagem pela criança. Nós vemos crianças usando a linguagem escrita desde muito cedo: desde os 3 meses, 4 meses ou 5 meses. E, é claro, ao longo de suas vidas. E a linguagem é usada de diferentes maneiras para diferentes coisas. Nós vemos, algumas vezes, crianças precisando se comunicar utilizando a linguagem escrita e também vemos, às vezes, alfabetos em seus quartos, e vemos, também, elas imitando o que seria uma ortografia ou uma letra. Nós vemos pais, desde bem cedo, sentando e lendo com seus bebês. Eles não estão lendo porque pensam que os bebês entenderão: eles estão lendo livros para as crianças porque amam esse ato! É um ato de amor entre eles e a criança, e nunca sobre aprender letras ou sobre como pronunciar palavras específicas. É sobre o ato; é sobre a prática e sobre como ela une mães e bebês, pais e bebês, e depois os seus filhos juntos. E isso se torna um processo para o decorrer da vida.
 
Isso é uma prática formal ou uma prática informal? Não sei como classificar. Provavelmente, a classificação é indiferente. Então, eu imagino, precisamos pensar com mais cuidado e mais amplamente sobre entender os usos da linguagem escrita, mesmo em crianças muito jovens e durante toda a vida adulta. E há variações. Acho que, às vezes - não todas as vezes nem na maioria das vezes, mas, às vezes - os pais começam a se preocupar com preparar as crianças para a escola. E então transformam suas casas e famílias em ambientes que mais se parecem com uma escola. Eles ficam nervosos, ficam ansiosos. Isso é lamentável. A linguagem escrita para crianças pequenas - e não apenas para crianças pequenas, mas em todas as idades - é geralmente sobre relações sociais; é geralmente sobre relacionamentos; é geralmente sobre emoções; é geralmente sobre se divertir; é geralmente sobre imaginação; é geralmente sobre fantasia; é geralmente sobre o amor. Esse é um pilar mais sólido para oferecer às crianças, aos adultos, às famílias e às comunidades, essa base que queremos chamar por letramento, mais do que o entendimento tradicional sobre as práticas de leitura e escrita.
 

Poderia contextualizar como é a organização do sistema educacional para crianças no seu país de origem? 

Nos Estados Unidos, a educação primária e a secundária são uma área bastante ampla, até mesmo no que tange ao letramento. Pode variar de sala de aula para sala de aula, inclusive na mesma escola. E isso sem considerar de escola para escola. Se falarmos amplamente sobre isso, acho que perdemos coisas importantes que estão acontecendo. Quando pensamos na educação em leitura e escrita por séries, da pré-escola até a 12ª série (correspondente ao 3º ano do Ensino Médio brasileiro), é comum os professores se sentirem presos a orientações para que enfoquem ou padrões, ou habilidades, ou avaliações, sendo que o que esses professores sabem seriam usos mais elaborados de leitura e escrita. Eu acho, então, que isso caracteriza muitas das salas de aulas, mas não todas, certamente, e fica impossível falar sobre todas elas.
 
Não acho que caiba a mim ou a ninguém mais dizer o que deve ser feito para todas as salas de aula, para todos os professores e para todos os alunos. As coisas são muito diversificadas, as pessoas são muito diversificadas. As comunidades de onde elas vêm são muito diversificadas. O que nós precisamos é de professores cheios de ideias que pensem profundamente a respeito dos seus alunos, que pensem profundamente a respeito da comunidade dos seus alunos, que pensem sobre as experiências culturais vividas por eles, que pensem profundamente sobre as linguagens que as crianças trazem consigo, que valorizem as heranças linguísticas e as heranças culturais que cada criança leva para a escola. E que desenvolvam um currículo escolar contendo o que as crianças trazem consigo e também suas heranças linguísticas e culturais.
 

Quais são, atualmente, as principais questões polêmicas ou campos de embate no sistema educacional dos EUA e como elas se relacionam com o contexto social?

Se você abrir o jornal, você verá que as questões mais controversas têm a ver com a relação entre o governo federal financiando as escolas distritais* [nos Estados Unidos, escolas públicas pertencem a distritos, por sua vez, subordinados aos governos estaduais]. Isso diz respeito às questões de alocação de recursos públicos e se a educação pública deveria ou não ser financiada por eles - ou se a educação privada também deveria receber incentivos. Eu penso que essa é a maior questão. Essa questão, é claro, se relaciona a um posicionamento ideológico que indaga se a educação pública é um direito de todos e se deveria receber contribuições da sociedade como um todo. Que indaga se toda criança, se todo estudante deve receber uma educação pública de qualidade. Eu acho que esse é um dos maiores debates que tem acontecido. Mas acho que há outras questões que não estão chegando às manchetes, como as várias escolas segregadas por cor. Nós passamos por um longo período na nossa história em que era muito claro que escolas segregacionistas não eram ilegais nem imorais. Mas contornamos tudo isso. [No entanto, ainda] temos muitas escolas que não têm fundos suficientes para cuidar de suas crianças. Temos segregação também por classe. Por cor e classe. E não vamos bem - e nisso preciso tomar cuidado - em muitos lugares. Nós não vamos bem no que tange aos estudantes com necessidades especiais – e há um conjunto amplo de necessidades especiais. Assim, temos muito em que trabalhar para atingirmos um alto nível em educação pública, na prática, para todas as crianças. Acho que há muitas pessoas que sentem que é para esse nível que devemos trabalhar com vigor e energia, e o mais rapidamente possível.
 

Em sua participação no Colóquio, você falou sobre segregação e ideologias culturais. Como esse tema se relaciona com essas questões da escola contemporânea, tanto no seu país quanto em outros contextos?

Eu acho que há uma ideologia e ela não consegue compreender que a educação de cada criança é uma responsabilidade de todo americano. Nós não podemos apenas nos preocupar com a educação das crianças na nossa casa e com a educação das crianças na vizinhança. Nós devemos nos preocupar com a educação de todas as crianças e assim devemos fazer, porque a educação de qualidade é um direito de toda criança. Não porque somos bonzinhos, não porque estamos sendo generosos, mas porque é um direito. É um direito da Federação. Assim eu penso que, ideologicamente, há muito trabalho a ser feito nessa área. E você também me perguntou sobre ideologia cultural. Minha preocupação é a de que estamos nos direcionando mais e mais para uma ideologia - e não só na educação pública, mas na educação pública e privada, e não só da pré-escola até a 12º série, mas também no ensino superior - que parece estar mais focada em preparar os jovens para o trabalho. E apenas isso. Certamente você quer que os jovens sintam que a educação que eles estão recebendo os ajude a ter uma boa vida, inclusive economicamente.
 
Portanto, eu acho que a educação precisa ser mais do que conseguir um emprego: a educação deve prepará-los para todos os domínios da vida. Ela deveria enriquecer seu pensamento, deveria enriquecer a valorização de sua própria cultura e de sua própria história, assim como das culturas e histórias e línguas das pessoas ao seu redor e, da mesma forma, da cultura e história de cada pessoa ao redor do mundo. Ela deveria expandir a sua imaginação e ajudá-lo a perceber não apenas a sua imaginação, mas também a imaginação dos demais. Ela deveria enriquecer todos os domínios e setores da vida. E a razão para fazermos isso é: nós somos humanos. E, se me permite, há uma diferença entre ser um humano e ser uma máquina, entre ser um humano e ser uma engrenagem em uma vida industrial e em um setor dela. Eu acredito essencialmente que os humanos devam ter o direito de gozar de suas vidas, de se relacionarem e de terem sonhos razoáveis em todos os domínios. Seres humanos não são, se me permite, animais, no sentido de serem subordinados. E isso podemos ver nos muitos filósofos, nas muitas religiões e nos muitos lugares que nos dizem que ser um humano é possuir o direito não apenas de ter uma vida, mas de desfrutá-la. 
 

O que é importante se levar em conta para a formação de professores, tanto na formação inicial quanto na formação continuada?

Um dos pontos fundamentais na formação inicial de educadores é ter um preparo que os ajude a se reconhecerem enquanto aprendizes e enquanto pessoas que continuamente aprenderão sobre os desafios de ensinar ao longo de suas carreiras e de suas vidas. Não há como um programa de formação inicial de professores oferecer a um novo educador tudo o que ele necessita saber, tampouco transmitir qualquer atitude que ele precisa ter. Contudo, você pode sair de sua formação com o desejo de continuar aprendendo, com o desejo de continuar crescendo e de aprender tanto com seus alunos quanto com outros professores. Também com o desejo de conectar seu conteúdo a questões vividas nos lares das crianças, nas comunidades e assim em diante. Eu também devo dizer que isso não acontecerá facilmente nem da noite para o dia: leva tempo e demanda força de vontade para dar resultados.
 
Também acredito que, tanto na formação inicial quanto na formação continuada de professores, precisa haver oportunidades para deixar transparecer essa situação na qual alguém se encontra, ao mesmo tempo enquanto ser humano e enquanto educador. Então eu preciso entender os diferentes tipos de dificuldades e problemas que podem ser enfrentados pelos meus alunos, e não apenas alguns estereótipos. O que significa que eu preciso me envolver na vida dos meus alunos e da comunidade de onde eles vêm. Eu não posso ser um professor à distância. Então, nesse sentido, trata-se de criar algum tipo de compromisso. Não apenas com a criança, mas com o mundo onde essa criança vive. Isso pode exigir - e muitas vezes exige – que eu me engaje e entenda os tipos de problemas políticos e de justiça social que possam estar presentes materialmente na vida dos estudantes com quem trabalho, e não me colocar a uma distância deles ou dessas questões.
 

A escola é a principal mediadora da cultura escrita nas sociedades hoje? A partir de seus estudos, poderia dizer alguns dos papéis da escola em relação às práticas sociais contemporâneas que envolvem a leitura e a escrita?

Eu acho que, para algumas pessoas, a resposta é provavelmente sim, mas, para outras, talvez seja não. O que eu diria é: o papel da escola na vida das pessoas varia bastante. E, em certo sentido, as escolas têm uma função estabilizadora na sociedade. Mas, quando você vai a salas de aula específicas, algumas delas dizem muito a respeito de mudança. [Essas salas de aula] falam muito sobre transformar as práticas predominantes, uma vez que haja mais oportunidades para os alunos reproduzirem os mundos onde vivem através da linguagem escrita e, talvez, se engajarem em ações que deixarão esses mundos em transformação, ora de maneira mais pessoal, ora de maneiras mais substanciais. Já outras salas de aula dizem mais a respeito de estabilidade, de aprender as práticas letradas dominantes. Mas eu acho que fazemos um desserviço para as escolas se ignoramos os professores que buscam ativamente refratar os tipos de práticas letradas dominantes e transformá-las em outros tipos de práticas. Então, é esse o mediador principal? Não é o mediador principal? Eu acho difícil dizer. Mas eu acho que há lugares na escola e na sala de aula que produzem, para muitos alunos, um impacto substancial em como eles usarão a linguagem escrita pelo resto de suas vidas. 
 

Você pode citar práticas de letramento em salas de aula onde você realiza pesquisas que podem ser tomadas como exemplo?

Nós estávamos falando sobre uma sala de aula no estado do Iowa justamente uns dias atrás. Nessa sala de aula, onde havia uma maioria de alunos afro-americanos, assim como uma professora afro-americana com uma vivência não apenas em educação, mas também em cultura, pedagogia e em sociolinguística... [Nessa sala de aula,] os alunos estavam lendo um poema. O poema se chamava AfterWinter [Depois do Inverno], de Sterling Brown. E, nesse poema, há o uso de linguagem afro-americana. Então os alunos leram o poema e a professora começou, de uma maneira que parecia mais uma lição tradicional: “vamos conversar sobre o assunto de que trata esse poema”.
 
E, assim, a professora fez aos alunos perguntas poderosas, ainda que eles não soubessem que eram poderosas. Ela disse: “quem é o eu-lírico nesse poema e como podemos identificá-lo?”. A partir daí, os alunos começaram a responder a questão, e ela disse: “como vocês sabiam?”. E os alunos apontaram para o uso da linguagem, no que ela disse: “vamos falar sobre a linguagem: vocês usam essa linguagem? Onde ouvimos essa linguagem? Que tipo de linguagem está presente no poema?”. E os alunos, tanto os negros quanto os brancos (porque tanto os negros quantos os brancos da sala falavam a linguagem afro-americana, e não apenas os afro-americanos) começaram a conversar sobre: “isso não é linguagem apropriada! Não é assim que devemos falar!”. E a professora continuou a contestar essas questões. “Bem, mas o que vocês querem dizer com apropriada? O que é realmente apropriado?”. E eles disseram: “bom, você sabe...”. E os alunos começaram a encontrar dificuldades e passaram a se esforçar enquanto respondiam essas questões, porque era a palavra da professora que estava fazendo com que eles enfrentassem tais conceitos. E a professora disse: “bem, eu às vezes escuto pessoas falarem comigo ou com outras pessoas: nós estamos falando como brancos! E o que isso significa?”. Eles começaram a contestar as questões de falar como brancos, falar como negros, as relações entre linguagem e fenótipos, a noção completa de que algumas línguas são melhores do que outras. Eles estavam se questionando e contestando, para resumir. E eles passaram a contornar as dificuldades e alguns dos alunos disseram: “espera aí! É assim que nós falamos! E não há nada de errado com a nossa maneira de falar! É como nós falamos!”. Outros alunos interpelaram. E o que a professora fez foi brilhante: ela não deu um sermão sobre aquilo em que eles deveriam acreditar; ela os mobilizou em um processo de contestações, excluindo pressuposições. Os alunos ainda discutiam ao sair, mas, antes de o fazerem, a professora disse: “alguns de vocês estão fazendo comentários muito bons, mas alguns comentários são abstratos. Vocês precisam se colocar nesses comentários e, depois disso, ver como se sentem a seu respeito”. E eles levaram essa discussão adiante por mais alguns dias.
 
Em uma entrevista com a professora, mais tarde, soubemos que tudo isso era planejado. Não aconteceu por acidente e não foi apenas um momento de ensino: ela sabia aonde queria chegar com a leitura do poema. A questão aqui é que a linguagem escrita, no caso, a leitura, foi usada como forma - ou, se me permite, como um dispositivo, ou, se você preferir, como uma ferramenta - para questionar alguns conceitos preconceituosos que os alunos trazem da cultura popular. Isso lhes ofereceu a oportunidade de contestar concepções negativas sobre a própria linguagem e a reconstruir valores que enfraquecem as hierarquias linguísticas. Esse é um exemplo de como professores podem ter um impacto profundo sobre seus alunos e sobre o mundo deles. Há muitos professores fazendo muitas coisas, talvez não exatamente as mesmas, mas transmitindo ensinamentos similares. Precisamos de mais deles? Sem dúvida! Nós podemos aprender uns com os outros ao fazer essas coisas. Não é apenas um professor. Eu não estou dizendo que é uma maioria de professores, assim como não estou dizendo que são todos eles, mas eu já estive em um bom número de salas de aula onde vi professores fazendo o mesmo tipo de ensinamento: engajando seus alunos a contestar pressuposições dominantes e os ajudando a adquirir uma visão melhor de si e de suas comunidades.