Desafiar mesmo na limitação (2)


     

Letra A • Quarta-feira, 27 de Julho de 2016, 10:23:00

 

Quais as contribuições de outros campos (como a terapia ocupacional, a fisioterapia, a fonoaudiologia, a psicologia) para o desenvolvimento de materiais e recursos didáticos para a educação inclusiva?

Na educação especial, essas outras áreas do conhecimento tiveram e continuam tendo uma função muito importante no tratamento dessas crianças: os educadores beberam durante séculos nessas áreas. Mas a parte pedagógica, exatamente porque eles se apoiaram demais nessas áreas, ficou por ser construída. Precisamos construir um conhecimento pedagógico, não nos apoiar nas áreas de tratamento, porque nós não vamos tratar essas crianças, nosso objetivo é educá-las. Se temos como objetivo a educação da criança, a primeira coisa que precisamos entender e acreditar é que ela aprende, e apostar nisso. Talvez ela não aprenda como os outros no mesmo ano, semestre, mês ou dia; mas, no ano seguinte, alguma coisa do que tenha sido aprendido terá ficado e cumprido seu dever. Para essas crianças, é importante que não só adaptemos os materiais, mas que criemos a possibilidade de construir um saber pedagógico. Os professores que já estão recebendo essas crianças sabem disso, [que é preciso] modificar suas práticas, sua metodologia de ensino e os materiais para poder incluir essas crianças. Uma boa educação precisa ter na sala de aula comum o atendimento educacional especializado. Se na sala comum ela está sendo alfabetizada, precisa ser alfabetizada também em braile (se é cega) ou em Libras (se é surda) em um outro espaço, para acompanhar a sala comum. Fora isso, os tratamentos de fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, pediatria etc. ficariam em outros espaços, apoiando essa trajetória pedagógica que está sendo feita na escola.

Quais são os erros recorrentes na concepção e na utilização de materiais didáticos na educação especial? Quais os caminhos para solucioná-los?

Acredito que os erros de concepção vão acontecer muitas vezes porque achamos que a pessoa com deficiência é incapaz. Às vezes, insistimos demais em querer trazer a coisa pronta para ela, objetos que praticamente não desafiam o sujeito. Nós não avançamos no conhecimento desse sujeito, porque ele traz limitações cognitivas e acreditamos que ele não vai avançar. Um exemplo: uma criança que não sabe ler e não sabe escrever seu nome, mas está no 2º ou 3º ano e o restante da turma está nesse momento discutindo o uso do dicionário; a essa criança não é dado o acesso, porque ela não sabe ler e escrever. Ela fica no fundo da sala desenhando, colorindo e os colegas fazem a atividade de procurar palavras e discutir sobre conceitos. Isso não é inclusão. A concepção é a de que a criança não pode acompanhar essa atividade, porque ela não sabe ler, escrever... Mas eu discordo: essa criança deve ter um dicionário e saber que existe um livro onde todas as palavras estão colocadas, que isso é fantástico e que ela precisa possuir um dicionário. [Isso] é desafiá-la mesmo na limitação. Se ela tem um dicionário e está participando, pode falar uma palavra e os colegas podem ensinar a procurar no dicionário e então descobrirão qual é o conceito daquela palavra, e o aluno poderá oralmente participar da aula, sem necessariamente ler e escrever.

A questão da utilização desses recursos também é muito séria, porque alguns experimentos trabalham com alguns materiais que não são adequados. Por exemplo, há crianças que precisam de muita força para poder escrever, por não terem controle motor fino, então precisam de certas adaptações. Às vezes, o professor recebe aquela adaptação, mas não sabe usar aquele material, [não sabe] como adaptar um determinado equipamento para poder ajudar a criança. Existem também materiais didáticos adaptados ou recursos em geral tecnológicos que ficam guardados na escola e o professor não tem acesso a ele. Eles, às vezes, ficam guardados na sala de recurso, como se só aquele aluno [com deficiência] pudesse usar. Mas o ideal é que todos possam usar e que esse aluno traga uma contribuição importante da presença dele ali, no uso desses recursos.

 

 

Uma estratégia recorrente dos professores é a tentativa de adaptação dos materiais disponíveis para a turma toda. Quais são as orientações para o professor realizar uma adaptação adequada?

Quando os professores recebem a criança com deficiência, eles buscam, querem contribuir. Infelizmente, a formação de professores em geral não atentou para isso esses anos todos. Eu acredito que precisamos avançar muito na formação. O que está acontecendo hoje é que o professor está recebendo esse aluno – algo que foi definido em 1990. Nós temos 26 anos de debate sobre isso, e agora esses professores estão recebendo esses alunos e tendo que se virar. O campo de conhecimento durante 26 anos não produziu quase nada em termos de estratégias e de recursos pedagógicos. O que foi produzido de conhecimento não foi divulgado e não entrou nos cursos de formação. Vemos os professores desesperados fazendo o que eles sabem, criando o que eles acreditam que é o melhor para aquela criança. Nesse sentido, eu acho fantástico, porque eles estão construindo um saber que está fora da universidade, dos debates, mas que serve para aquela criança. Por quê? Aí retomo a primeira questão: é quando conhecemos o sujeito que vamos dizer onde está o nó, em que momento ele erra ou não dá conta. Os professores estão construindo conhecimento lá na sala de aula, criando os materiais adaptados e buscando alternativas. Procuram na internet ou nas orientações do Ministério da Educação – que são muito utópicas, muitas vezes fora do contexto deles – e muita coisa eles criam. É um saber a ser construído, porque nós não vamos tratar o aluno com deficiência na escola. Trata-se de educar, o que significa criar autonomia, potencialidade.


Diante dos desafios da inclusão, como o professor pode utilizar o material didático como um aliado?

Ele vai ter que adaptar, porque a educação secularmente foi construída para os ditos “normais” e as crianças com deficiência ficavam a cargo da saúde. É um momento histórico entender que eles são “educáveis”: eles estão na escola e precisamos apostar que podem aprender. Quando um professor faz uma adaptação ou busca alguma coisa na internet, realiza um movimento de entender determinada síndrome [e compreende que] com algumas adaptações as crianças podem realizar a tarefa. É basicamente acreditar que essa criança pode ser potencializada. E entender que existem limitações biológicas e isso não vamos mudar: uma criança que não tem os braços não vai escrever com os braços – mas ela pode adaptar um lápis na ponta do nariz ou segurá-lo com a boca. Ao receber essa criança, a primeira coisa é tentar entendê-la: em que momento ela está e quais as suas limitações. Identificada a limitação biológica, nós vamos entender a deficiência social: de que família ela vem, o quanto apostaram nela, o que essa história traz. Aí o professor vai localizar esses materiais adaptados ou adaptar alguns materiais para ela. Vamos utilizar esses recursos como aliados, desde que eles não segreguem essa criança na sala de aula. Algumas professoras dão fichinhas coloridas para a criança, Lego [marca de blocos de montar], materiais didáticos muito interessantes, e a colocam no fundo da sala com a auxiliar do lado, achando que estão ajudando essa criança. [Enquanto isso], os outros 24 alunos estão fazendo um dever maçante de dezena, centena e milhar, por exemplo. E aí o coleguinha fala: “professora, por que o fulano só brinca?” – eles não entendem. Circunscrevendo essa questão do material, ele pode ser um aliado, desde que não seja um motivo de exclusão dentro da sala de aula, [desde] que seja um aliado no sentido de criar práticas, um desenho universal, uma pedagogia universal, para todas as crianças.

 

 


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