Desenvolvimento de pesquisa com crianças no contexto de pandemia da Covid-19

Em Formação | Letra A 57


     

Letra A • Sexta-feira, 20 de Janeiro de 2023, 14:31:00

Por Rodrigo Vieira Rezende*

Há onze anos sou professor na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Em minha trajetória, já exerci diferentes funções, entre elas, a de professor em turmas de alfabetização e do 2º ciclo, em turmas de correção de fluxo, e coordenador pedagógico. Atualmente, trabalho como mediador em algumas escolas da rede pública. A prática profissional me proporcionou grandes ensinamentos, bem como a realização de trabalhos de grande satisfação na função docente, como fruto da aplicação de propostas pedagógicas intencionais. Em minha caminhada, sempre carreguei as afirmações do professor José Carlos Libâneo, que apontam a importância de uma escola pública democrática e a certeza de que a maioria das crianças são intelectualmente capazes. E, também, a ideia da professora Vera Candau, ao afirmar que a “reflexão didática parte do compromisso com a transformação social, com busca de práticas pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente para a maioria da população”.   

Em 2019, como parte do meu processo formativo como educador, ingressei no mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da FAE/UFMG. Em 2020 e 2021, desenvolvi minha pesquisa, em que foi possível, mais uma vez em minha trajetória, reafirmar a minha confiança na capacidade e na potência das crianças de escola pública. Vou contar aqui um pouco desse momento tão especial para mim, pelo privilégio de estabelecer interação com tantas crianças em um período de distanciamento social e pelo desafio de desenvolver uma pesquisa com elas durante a pandemia da Covid-19.

A pesquisa tem como título “Produção de textos multimodais no suporte digital por crianças de 8 a 10 anos provenientes de duas escolas públicas”. Partiu de um contexto atual de aumento do acesso e do uso de dispositivos digitais por crianças, o que traz novas possibilidades de leitura e escrita no ambiente digital. Assim, o objetivo geral foi investigar as produções de textos em dispositivos digitais em que são integrados a escrita, a imagem, os vídeos e os sons.

As pesquisas acadêmicas são precedidas por um projeto em que o pesquisador define a abordagem, os participantes, o local e os instrumentos de coleta de dados. Sabe-se que, no momento da ida ao campo de pesquisa, esses fatores podem sofrer alterações em função das circunstâncias. No meu caso, as circunstâncias foram drásticas e alteraram profundamente meu planejamento. Tudo estava preparado, mas todas as escolas foram fechadas no dia 19/03/2020, devido à pandemia da Covid-19. Como encontrar crianças para desenvolver a pesquisa, já que elas não estavam mais na escola? Como propor a produção de textos à distância? Esses foram os desafios que tive que enfrentar da noite para o dia.

Após 5 meses de isolamento, estabeleci contato online com coordenadoras pedagógicas e professoras de duas escolas apresentando minha proposta. Essas valorosas trabalhadoras da educação, usando de suas credibilidades perante as famílias, convidaram as crianças, por meio dos pais, para participarem de minha pesquisa. Em meio a esse movimento, produzi vídeos me apresentando, que foram encaminhados aos pais com o pedido de que mostrassem aos filhos. Também liguei pessoalmente para aqueles que demonstraram interesse. Para minha felicidade, 20 crianças aceitaram o convite para participar da pesquisa.

Por meio de aplicativos como Google Meet e WhatsApp ou por ligação telefônica, consegui estabelecer a interação necessária para a realização de entrevistas coletivas e produções de textos multimodais. Duas propostas de produção de textos foram apresentadas às crianças: uma era sobre a prevenção contra o coronavírus e a outra era uma retextualização a partir de um áudio do livro A vaca que botou um ovo, que foi encaminhado pelo WhatsApp. Ambas as temáticas foram realizadas no papel e também no suporte digital.

Para a produção manuscrita, fui até a casa de cada um levar um kit composto por uma caixa de lápis de cor, canetas hidrocor, lápis de grafite, borracha e um material encadernado com propostas de produção de textos e desenho. Antes de ser entregue, todo o material passou por procedimentos de higienização idênticos aos previstos nos protocolos da cidade para a entrega de atividades escolares. 

Na primeira produção digital, eles escolheram a plataforma/aplicativo que gostariam de produzir e decidiram quem seria o escriba. Depois, compartilhavam a tela do dispositivo digital que utilizavam, permitindo que eu realizasse observações de todo o processo. Na sequência, dialogavam entre eles e produziam o respectivo texto multimodal.

Já na segunda produção digital, o pesquisador foi o escriba e as produções ocorreram exclusivamente na plataforma digital Book Creator. Essa opção ocorreu para que as crianças ficassem mais livres nas escolhas e que não fossem impedidas de usar quaisquer recursos semióticos por conta de alguma dificuldade de habilidade digital. Com base no áudio da história já citada anteriormente, iniciavam a produção e apontavam ao pesquisador cada parte do texto e como deveria ser produzida.

Utilizei várias estratégias para construir um ambiente em que elas pudessem se sentir confortáveis e confiantes para conversar e produzir textos, considerando a especificidade de se realizar pesquisas com crianças. Entre essas, estão: perguntar sobre sua rotina, suas preferências, seus filmes e personagens prediletos; o uso de slides coloridos; jogo da memória para jogarem em tempo real; brincadeiras de descobrir o filme representado por emojis; brincadeira de adivinhar o desenho — fazia desenhos em um quadro interativo e elas tentavam descobrir.

Por meio dos desenhos, entrevistas e produções de textos desses meninos e meninas, foi possível comprovar como esses sujeitos participam da vida social e possuem vários conhecimentos. Ficou demonstrado que eles têm uma prática digital ativa, não se limitando a um consumo passivo. A atuação dessas crianças vai além e o interesse passa pelo uso das ferramentas de pesquisa para resolver situações, escolares e não escolares; pesquisas para saber sobre a N.A.S.A; uso de tutoriais do YouTube para aprender sobre como fazer maquiagem e as unhas, bem como aprender a cozinhar e a tocar violino. Também constatei que as crianças são sujeitos atuantes em práticas de produções de textos multimodais, em contexto não escolar, mobilizando a linguagem como forma de expressarem seus gostos e sentimentos, participando de práticas comunicativas reais e não artificiais, ampliando o escopo de sua atuação sobre o mundo. O suporte digital ampliou as práticas de leitura e escrita, conforme conclui a pesquisa.  

Desde o início, meu propósito sempre foi buscar o olhar das crianças, e elas foram, de fato, sujeitos ativos na realização da pesquisa. Os vários desafios encontrados foram superados pela empolgação e força delas. Sentir essa força em um tempo tão sombrio como o da pandemia foi, pessoalmente, muito revigorante.

 

*Mestre em Educação na linha de pesquisa Educação e Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social da Faculdade de Educação da UFMG.