Desmonte na educação brasileira | parte 2


     

Letra A • Domingo, 23 de Outubro de 2022, 13:39:00

 
O desprojeto bolsonarista
 
Durante a campanha presidencial de 2018, a educação apareceu como um ponto de destaque nos discursos do então candidato Jair Bolsonaro. Na época, discussões sobre ‘marxismo cultural’, homeschooling (ensino doméstico) e ideologia nas escolas públicas e universidades do país ganharam força no debate eleitoral. Com isso, a guerra ideológica, a proteção aos valores tradicionais e a militarização nas escolas passaram a ser os principais motes bolsonaristas para a área da educação. 
 
Com a vitória de Bolsonaro nas urnas, as primeiras ações para a educação vieram rápido. Já no segundo dia de governo, o ministro Ricardo Vélez alterou o edital do PNLD**. As modificações excluíam a restrição que proibia a presença de publicidade nas obras didáticas, bem como a responsabilidade de obras que combatam a violência contra a mulher e suprimiu o trecho que exigia referências bibliográficas. No dia 23 de janeiro de 2019 foram apresentadas as principais metas do governo para os primeiros 100 dias, entre elas estava a regulamentação do homeschooling, enchendo de esperança os apoiadores mais conservadores de Bolsonaro. Porém, o governo não conseguiu negociar com o Congresso Nacional, postergando a pauta mais conservadora na área educacional.
 
Vélez foi exonerado do MEC depois de desgastes políticos e frases polêmicas como: “voltar a moralidade moral e cívica”, “universidade para todos não existe” e “1964 não foi golpe”. O segundo ministro de Educação de Bolsonaro, e o mais ideológico, foi Abraham Weintraub, responsável pela criação da Política Nacional de Alfabetização (PNA). A nova política prevê, segundo Isabel Frade, presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização e pes-quisadora do Ceale, “um paradigma baseado na ciência cognitiva e nas neurociências, de-fendido como uma ‘evidência’ científica a ser seguida num campo em que inúmeras pesqui-sas já mostraram a complexidade de fatores políticos, sociais, culturais, linguísticos e psico-lógicos envolvidos na alfabetização. Em sua implementação, houve uma série da manifestos e documentos produzidos por professores e pesquisadores brasileiros”. Segundo ela, a PNA também defende que o ensino infantil promova habilidades de "literacia" como uma forma de preparação para a alfabetização, desconsiderando as repercussões conceituais e meto-dológicas das relações entre alfabetização e letramento que estão presentes nas práticas pedagógicas e nos documentos oficiais.
 
“O governo Bolsonaro pretende fazer do processo de alfabetização um processo reducionista, impingindo aos educadores brasileiros uma única forma de alfabetização de crianças, o chamado método fônico. Esse método vai na contramão de tudo aquilo que os educadores brasileiros, e do mundo inteiro, entendem como alfabetização. Uma criança aprende a ler e escrever, não apenas entendendo os sons das letras, das sílabas e das palavras; elas aprendem refletindo sobre a sua própria realidade e dando sentido a ela”, afirma César.  
 
Após polêmicas e diversas críticas dirigidas às universidades públicas e aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Abraham Weintraub foi substituído por Milton Ribeiro, pastor da Igreja Presbiteriana e ex-reitor da Universidade Mackenzie. O novo ministro escolhido a dedo pelo presidente, depois da celeuma envolvendo um primeiro escolhido, deveria apaziguar as querelas envolvendo o MEC, mas pode-se dizer que a estratégia não funcionou bem.
 
Milton Ribeiro protagonizou falas capacitistas envolvendo estudantes com deficiência, além de dar continuidade às discussões acerca do novo PNEE (Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida), que, segundo especialistas, é um grande retrocesso para os direitos dos estudantes com deficiência. Luiza Corrêa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), lembra que a nova política já vinha sendo discutida desde o governo Temer, com o argumento de que a PNEE de 2007 não teve participação das associações e das pessoas com deficiência, o que, segundo ela, é mentira.
 
“Foi obviamente discutido, um dos argumentos do governo Temer, ainda em 2018, para refazer foi o que deu origem a esse PNEE apresentado em 2020. O argumento foi que o anterior não tinha sido discutido, logo era inconstitucional, não democrático; foi isso que desencadeou essa discussão, o que estamos vendo é um desmonte aos direitos educacionais e sociais das pessoas com deficiência”, salienta a coordenadora.
 
Segundo Luiza, há um interesse de diversos partidos e empresários em como se dará a distribuição orçamentária, visto que no governo anterior havia um pacto nos bastidores para que as instituições de educação especializadas retornassem com a segregação dos estudantes. A advogada lembra que a nova política está baseada em outros tipos de interesse, tanto ideológicos quanto financeiros. 
 
Durante a pandemia, o desmonte educacional não diminuiu, pelo contrário, aumentou. Com o isolamento social, para reduzir a transmissão do coronavírus, as escolas e as universidades precisaram adotar caminhos digitais para dar continuidade ao calendário letivo, o que prejudicou principalmente os estudantes de baixa renda, que por diversos motivos não possuem acesso à internet. Segundo Isabel Frade, “neste período, o Ministério da Educação não construiu políticas federais, nem de financiamento, nem pedagógicas, que norteassem Estados e Municípios a atuarem para redução das desigualdades”. Ao contrário, o presidente optou por vetar o PL 3477/20 que previa ajuda financeira de R$ 3,5 bilhões para garantir acesso à internet para alunos e professores das redes públicas de ensino. 
 
As escolas cívico-militares
 
Ainda durante a campanha presidencial, Bolsonaro se comprometeu com a criação de uma escola militar em todas as capitais estaduais. Catarina de Almeida nos lembra que a militarização das escolas entrou na agenda nacional com o governo Bolsonaro, e que há algumas diferenças entre essa prática e os colégios militares.
 
“As escolas militares são vinculadas às corporações, por exemplo o Exército, e normalmente visam a atender mais os dependentes de militares do que a sociedade civil. Essas escolas têm militares que gerenciam todo o processo burocrático e pedagógico, os professores militares são licenciados e seguem os princípios da corporação, é um processo de escolha ir ou não para esse modelo de ensino, diferente da escola militarizada [cívico-militares]. Nesse caso, a gestão educacional de uma escola pública é entregue aos militares, mais especificamente à polícia”, explica Catarina.
 
Se quisermos perceber a lógica da escola militarizada, basta olharmos para as escolas no entorno dela, visto que os alunos que não se adequam ao projeto, não entregam rendimentos e nem demonstram obediência passam por uma “transferência educativa”. Segundo a professora, a justificativa apresentada pela “escola” é a de proteção e segurança para o estudante. “Como podemos esperar que os pais desse menino ou menina neguem a transferência? Eles sabem como os militares tratam as pessoas, e principalmente os negros, fora da escola. Dessa forma, é possível perceber um aumento de matrículas nas redes de ensino no entorno da escola militarizada”.  
 
“Se a nossa Constituição Federal está falando sobre uma educação de direito, e que essa educação é para todos os sujeitos e ‘sujeitas’, ou seja, eu preciso olhar quando a escola se torna um espaço homogeneizado, de seres iguais e sem expressão. Essas escolas negam a educação, a diversidade, a representatividade; elas negam o sujeito. Então, eu preciso dizer, a escola militarizada é uma antiescola, é antieducação. A militarização das escolas significa para mim a morte delas; a morte da própria educação; e a morte da construção de uma sociedade diversa”, ressalta a pesquisadora. 
 

 

**O mesmo edital que havia sido modificado por Mendonça Filho e Michel Temer.

 

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