Direitos humanos na literatura

Ao estimular a reflexão sobre as relações humanas, a leitura literária pode contribuir para formar cidadãos


     

Jornal Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 20:03:00

Por Manuela Peixoto

Ao trabalhar o livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, que conta a história de uma menina negra que é admirada por um coelho, a professora Magna Torres se deparou com uma situação de racismo por parte de uma de suas alunas. “O coelho é louco, ser preto é feio”, disse a menina após a leitura. Assustada com a declaração, Magna, que dá aula para crianças de 5 e 6 anos na Escola Municipal Todos os Santos, em Duque de Caxias (RJ), passou a se questionar até que ponto aquela educação que ela vinha trabalhando em sala de aula era realmente transformadora. “Por que toda madrasta é bruxa e todo vilão é feio? Por que toda princesa é loira, todo príncipe é forte e os negros não são protagonistas nas histórias? Não adianta eu ensinar que preconceito é ruim se os livros sempre trazem pessoas brancas como heroínas. As crianças têm que se sentir representadas”, defende.

Para potencializar na escola discussões sobre os direitos humanos, que trazem princípios como liberdade, igualdade e dignidade, a literatura e os livros infantis são fundamentais. É o que afirma a professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) Constantina Xavier Filha, que também é autora de livros para crianças. “Não só os livros que são direcionados totalmente para a temática dos direitos humanos, mas outros que discutem a violência, o gênero e o racismo de um jeito mais próximo ao cotidiano deles. Muitos professores têm receio de trabalhar esse tema com as crianças, mas elas anseiam por falar disso, pois estão imersas nesse mundo e têm dúvidas. Discutir direitos humanos faz com que elas possam pensar sobre suas vidas.”

Da reflexão à ação

Sentindo a necessidade de desconstruir mitos encontrados nos livros, Magna Torres criou um projeto em que trabalhou histórias que tratam das várias formas de opressão. Ela conta que, depois de lidas as histórias, as crianças eram convidadas a refletir, reconstruir frases de senso comum e, em seguida, criar cartazes com elas, que gerou resultados como: ‘Homem chora’, ‘Meninas também jogam futebol’ e ‘Amigos também dizem eu te amo’. “Eu acredito em um trabalho em que as relações com a literatura podem contribuir para uma educação que seja, de fato, transformadora”.

Em 2012, Constantina Xavier Filha realizou um projeto para incluir referências em direitos humanos em sala de aula, como as questões de violência, gênero e sexualidade. Dentro do projeto, foram produzidos quatro livros, dois deles com a participação dos alunos. O primeiro passo foi coletar informações. A partir da leitura de alguns livros infantis, Constantina conversou com as crianças - com idades entre 9 e 12 anos – e discutiu a questão da violência. “Nesse momento, a gente trabalhou com casos que elas vivenciaram, ouviram ou presenciaram, seja na televisão ou na vida real. Depois disso, cada um desenhou sobre a violência que mais os afetou”, relata Constantina. Desses desenhos, surgiu o livro Viver sem violência é um direito.

No segundo livro produzido por Constantina com a ajuda das crianças, intitulado Meninos e Meninas têm Direitos, foram trabalhados os direitos humanos a partir da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959. Os alunos foram introduzidos aos dez princípios da Declaração e discutiram cada um deles. “Depois dessa conversa, cada uma escolheu o princípio que mais achou importante”, conta. A partir dessa experiência, as crianças também fizeram desenhos que foram parar nas páginas do livro.

A formação do professor

A literatura é essencial também para a formação dos adultos. Por isso, mais do que só ler em sala de aula, o professor precisa se aproximar da literatura, ter prazer em ler e perceber como a potencialidade de significação dos textos literários contribui para a formação dos seres humanos. Seguindo esse fundamento, o projeto Tertúlia Literária, organizado pelo Ceale, trouxe o tema de direitos humanos para sua edição de 2014. Segundo Mônica Correia Baptista, professora da UFMG e uma das coordenadoras do projeto, a ideia do Tertúlia é estimular a leitura e a troca de experiências entre os professores e, assim, contribuir para o entendimento do que é literatura e o que são os direitos humanos – e qual a relação existente entre os dois. “O professor precisa se apropriar bem desses conceitos, para que sua atuação como promotor de leitura funcione. Se ele não for um leitor apaixonado, ele dificilmente vai conseguir que seu aluno se torne um leitor. E o Tertúlia parte desse pressuposto: fazer com que o professor tenha momentos para ler focados nele mesmo, para que a leitura cumpra esse papel de humanização também em sala de aula”, ressalta Mônica.

Para Mônica Correia, pensar direitos humanos na literatura tem duas vertentes, sendo a primeira a de que a literatura é uma necessidade universal. “Todo ser humano tem necessidade de alguma espécie de fabulação. E a literatura é toda a criação de toque poético e dramático. Todos temos o direito a ter esse contato, fazer parte disso”, defende. A segunda vertente seria a literatura como importante instrumento de denúncia. “Por meio da literatura, a gente acaba conhecendo as violações dos direitos, as atrocidades cometidas contra os seres humanos pelos próprios seres humanos. É uma arma para desmascarar situações onde há negação ou restrição de direitos humanos”, completa.