Do direito republicano à escola, à leitura e à escrita para deveres das famílias: um alerta

Editorial | Letra A 54


     

Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 18:04:00

 
Na história da cultura escrita, as práticas de ler e escrever nem sempre estiveram atreladas à escola, havendo interesses do Estado, com sua burocracia; da igreja, com sua doutrinação; do comércio, com suas economias, sempre condicionando seus usos. Cada uma dessas instituições tinha propósitos específicos e as práticas de cada uma delas não se comunicavam, necessariamente, umas com as outras. Nesse sentido, para participar da sociedade, não era necessário ler e escrever, e a alfabetização não era um direito de todos, mesmo das classes abastadas.  
 
No entanto, à medida que as práticas de ler e escrever vão se disseminando, quando a sociedade vai se tornando cada vez mais grafocêntrica, quando a oferta de textos vai além de usos burocráticos, comerciais e religiosos para abarcar leituras extensivas de toda ordem, nos seus usos práticos, científicos e literários, aparece a necessidade da disseminação da escrita pela via da escola de massa. Isso significa que ler e escrever passam a fazer parte de atividades valorizadas, em detrimento do conhecimento oral. No entanto, ao mesmo tempo que o ler, escrever e contar passam a fazer parte do repertório básico de habilidades de um tempo, usos mais valorizados estão presentes em outras instâncias e para classes abastadas, seja em níveis mais avançados da escolarização, seja em práticas cultivadas. Comparando as funções de ensinar rudimentos da escola de massa do século XIX com as funções que se colocam para a educação universalizada e para a escola pública de hoje, constatamos a complexidade de uma escola contemporânea que tem o compromisso de apresentar um repertório mais amplo de textos, primando pela laicidade e pela diversidade. 
 
E as famílias? Como ficam numa comparação com várias dessas instâncias? A instância familiar não é isolada da complexa rede de poder e distribuição da cultura escrita e de outros bens materiais e simbólicos. Ainda no século XIX, as famílias abastadas contratavam um preceptor para ensinar seus filhos a ler e escrever. No século XXI, ainda há famílias cuja primeira geração de alfabetizados é a dos filhos. Assim, há diferentes letramentos familiares que não refletem apenas escolhas, disposições de cada grupo para ler e escrever, pois há grupos alijados da cultura escrita e da escolarização, que são a maioria da população, e não tiveram vários direitos culturais e sociais garantidos.  Assim, fica para as políticas escolares de Estado e, consequentemente, para a escola, a tarefa de proporcionar o contato com práticas e textos das mais variadas formas, ampliando horizontes e repertórios. Na escola laica, cabem práticas de letramento e textos diversos, ao mesmo tempo em que há várias culturas do escrito compartilhadas com todos, e o próprio processo de escolarização amplia as práticas de ler e escrever. 
 
Embora saibamos que a família tem um papel fundamental na criação de disposições para a leitura, a diferença das práticas sociais entre classes sociais, a desigualdade de condições de vivenciar culturas do escrito mais valorizadas e a complexidade da cultura que a escola pode oferecer nos obrigam a ter cautela com qualquer transferência de responsabilidade da escola para a família. Não podemos penalizar os sujeitos cujas famílias, apesar da sua boa vontade, não sabem ler e escrever, nem têm oportunidade e tempo para cultivar usos literários e científicos. Também não podemos submeter os sujeitos a práticas familiares que priorizam apenas um uso da leitura e da escrita. Assim, a escola acaba sendo um lugar em que a leitura e a escrita são cultivadas em equidade. 
 
A pandemia nos mostrou o quão pesada é a tarefa familiar de sustentar um vínculo escolar e a relação dos sujeitos com o conhecimento escolar em condições de distanciamento. Isso vale para famílias de várias classes sociais. Nesta edição, as diferenças entre letramento familiar e outros tipos de letramento são problematizadas, mostrando-nos o perigo de uma transferência de responsabilidades da escola para a família, no que tange à ampliação de práticas de leitura e escrita. Qualquer proposta que desconsidere as desigualdades entre as famílias, idealizando suas práticas e competências, só vai reforçar as desigualdades de acesso à leitura e à escrita. Este indício de desescolarização da escrita que encontramos em alguns discursos e, sobretudo, em determinadas políticas contemporâneas tem que nos colocar em estado de alerta máximo para defender valores republicanos e não perder direitos duramente conquistados.