Educação Infantil: um direito das crianças

A evolução do acesso à educação na primeira infância no Brasil e por que ele é tão importante


     

Letra A • Sexta-feira, 06 de Agosto de 2021, 15:36:00

 
Por Naide Sousa
 
Creches e escolas infantis são, relativamente, uma novidade no Brasil. É difícil encontrar uma pessoa adulta, com mais de 30 anos, que não tenha passado seus primeiros anos sob os cuidados exclusivamente dos pais, dos avós, de uma vizinha, de uma babá ou de um irmão mais velho.
 
Enquanto a infância era vista apenas como uma das fases do desenvolvimento biológico de uma pessoa, a educação infantil era tida como uma ação exclusivamente assistencialista, em especial, o atendimento da fase de 0 a 3 anos, realizado em creches, que demanda maiores cuidados com higiene, saúde e alimentação. Por isso, as primeiras políticas federais de educação infantil que surgiram no Brasil, em 1975, foram vinculadas à Legião Brasileira de Assistência (LBA).
 
Amparados em estudos sociais e educacionais, movimentos sociais ligados à infância e à educação passaram a reivindicar, então, o olhar sobre a criança enquanto indivíduo social e sujeito de direitos. Com esse argumento, a Constituição Federal de 1988 declarou a educação infantil como direito do cidadão e dever do Estado. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, de 1996, regulamentaram e reforçaram essa previsão constitucional. A primeira responsabilidade do Estado se tornou, então, e ainda é, garantir acesso à escola para todas as crianças de 0 a 6 anos no país. “É na Educação Infantil que a criança irá se desenvolver integralmente, pois é durante essa etapa que ocorre o processo de humanização e troca de experiências sociais que a tornarão um sujeito com identidade e subjetividade”, defende Regina Flávia Fonseca, diretora do Núcleo de Educação Infantil Nossa Senhora de Fátima, de Itaúna (MG).
 
Arquitetura da Primeira Infância
 
Em 2003, o Programa Primeira Escola, da prefeitura de Belo Horizonte (MG), inaugurou as Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEIs), prédios públicos voltados para a educação, pensados a partir das necessidades de desenvolvimento físico, social e educacional das crianças pequenas.
 
Sob a consulta de arquitetos, engenheiros, pedagogos e psicopedagogos, foi projetado e padronizado um modelo de instituição que instigasse a aprendizagem, o lúdico e a interação das crianças entre si, com os adultos e com o espaço. As UMEIs deveriam ter, então, espaços abertos e verdes, disponibilidade de brinquedos adequados, biblioteca e mobiliário infantil, com privilégio pela horizontalidade da escola e, também, com incentivo à formação continuada e qualitativa dos educadores.
 
Beatriz Abuchaim, que é Gerente de Relações Institucionais e Governamentais na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, explicita a importância desses aspectos como garantias da qualidade do ensino na educação infantil: “Tanto professores com uma boa formação inicial, quanto redes que invistam numa formação continuada de seus professores, esses profissionais tendem a ter resultados melhores em relação ao seu trabalho. E outra questão é a própria infraestrutura do prédio ser adequada para atender crianças pequenas. É uma escola que tem livros? É uma escola que tem materiais de arte? Tem brinquedos? Porque tudo isso é muito importante para enriquecer as práticas pedagógicas na educação infantil.” Reforçando a importância dos múltiplos suportes para o desenvolvimento na primeira infância, Beatriz Abuchaim pontua que: “um outro fator, também relacionado à questão de infraestrutura, que é muito importante para as crianças pequenas, é o contato com a natureza. É ter acesso a espaços amplos onde elas possam brincar, possam imaginar, possam se desenvolver motoramente, correr, fazer atividade física, tomar sol. Isso é muito importante para esse desenvolvimento pleno da criança.”
 
Usando desses recursos que centram as oportunidades diversas de aprendizado das crianças menores, principalmente através da dimensão espacial, o Programa Primeira Escola se tornou referência nacional. Seu projeto arquitetônico passou a compor os Parâmetros Básicos da Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil do Ministério da Educação, em 2006, e se espalhou pelo Brasil na forma de UMEIs, CEMEIs e EMEIs. A diferença entre as três modalidades de instituição se dá pela faixa etária atendida e pelas atualizações das nomenclaturas. Há, ainda, outras modalidades de instituições infantis, variando por municipalidade, como os Centros de Educação Infantil Indígena (CEII), Centros de Educação Infantil (CEI) e creches conveniadas, creches e escolinhas particulares, Núcleos de Educação Infantil e outros.
 
Lugar de criança é na escola
 
Em 2014, o relatório do Plano Nacional de Educação (PNE) trouxe dados quantitativos em resposta às mudanças que ocorreram na educação infantil nos 10 anos anteriores, com a implantação das UMEIs. E lançou metas para os 10 anos futuros.
 
Entre o começo da década de 2000 e o começo da década de 2010, a porcentagem de crianças de 0 a 3 anos em creches foi de 10% para 30% da população dessa faixa etária, e de menos de 50% para 90% das crianças de 4 a 6 anos, em pré-escolas.
 
Para a década seguinte, até 2024, as metas do PNE para a educação infantil são a universalização do atendimento na fase pré-escolar (4 a 6 anos) e acesso de 50% das crianças nas idades de 0 a 3 anos. Originalmente, a meta de universalização tinha prazo para 2016, e não foi atingida pelo deficit de 10% da população em idade pré-escolar.
 
Esses 10% se sobrepõem a outras vulnerabilidades que afastam essas crianças da escola, uma vez que parte delas vivem em áreas rurais, em comunidades tradicionais, ou em regiões periféricas e, também, encontram-se no recorte mais pobre da nossa população.
 
A universalização da educação infantil de 4 a 6 anos esbarra, ainda, na falta de escolas e em problemas que perpassam o campo educacional, mas não o são exclusivos, como acesso a transporte, infraestrutura e outros recursos básicos e a atenção às comunidades tradicionais não urbanas, como povoados rurais, quilombos e aldeias.
 
Os desafios para se atingir a meta de matrículas entre crianças de 0 a 3 anos espelham os da fase seguinte, mas com mais severidade, uma vez que há maior disparidade de renda, etnia e classe social entre as crianças dentro e fora das creches. Somam-se, também, os fatores da não obrigatoriedade de frequência nessa faixa etária para ingressar nas etapas escolares e da maior despesa que essa etapa representa para os órgãos públicos.
 
Como a administração da educação infantil cabe às prefeituras, essas questões ganham os mais distintos relevos a cada limite de municípios. Na pioneira Belo Horizonte, segundo a Secretaria Municipal de Educação, o ensino pré-escolar foi universalizado e 74,03% das crianças de 0 a 3 anos do município estão matriculadas na rede, o que bate e ultrapassa a meta do PNE e do plano municipal.
 
Já no interior do estado, em Itaúna (MG), por exemplo, as primeiras CEMEIs e UMEIs foram inauguradas há cinco anos e hoje o município, segundo o secretário municipal de Educação Weslei Lopes da Silva, já universalizou o atendimento da pré-escola, com escolas distribuídas por quase todos os bairros e povoados rurais da cidade, e seu atendimento da população de 0 a 3 anos corresponde a cerca de 40% da demanda.
 
Em Itaúna, os 60% das crianças que a prefeitura não consegue atender formam uma lista de espera. Esse é um processo comum e recorrente na maioria das cidades pelo país, e que exige, muitas vezes, um cadastro da criança no sistema de espera durante a sua gestação.
 
Mais conquistas e desafios
 
“Além de beneficiar as crianças com uma alimentação saudável, cuidados em várias instâncias e atividades que possibilitam um melhor desenvolvimento, a política de educação infantil permite a muitas famílias a segurança para que possam trabalhar e, assim, alcançarem rendimentos financeiros e melhores condições de vida”, reflete o secretário Wesley Lopes, sobre os impactos da inserção das crianças no sistema educacional que se estendem também para a família e a comunidade.
 
A ampliação do acesso à educação infantil pode ser vista como um dos possibilitadores, de forma indireta, do ganho de renda das famílias brasileiras nas últimas duas décadas. Com as crianças nas creches e pré-escolas, os responsáveis podem trabalhar e estudar, e ainda terem acesso a programas de transferência de renda. E as crianças, recebendo um atendimento de qualidade, vislumbram mais chances educacionais e profissionais em seu futuro.
 
É um efeito cíclico, a longo prazo, como diz a psicóloga Beatriz Abuchaim: “Isso também está relacionado a um maior grau de escolaridade dos adultos. E faz com que as pessoas se informem mais, entendam que é importante os seus filhos estudarem mais. Então, essa informação foi crescendo na sociedade; houve um crescimento, uma valorização.”
 
Apesar do longo caminho de avanços percorrido até aqui, nossas políticas para a primeira infância têm ainda um grande percurso para seguirem. Ainda faltam escolas e creches, falta qualificação e valorização dos profissionais e da comunidade escolar, e há disparidades regionais, de classe, etnia e de corpos no acesso à educação infantil. E um impeditivo, cada dia maior, para a garantia da presença real de todas as crianças nos primeiros ciclos educacionais e da qualidade destes é a falta de financiamento.
 
Beatriz Abuchaim explica que “a questão do financiamento justamente afeta principalmente os municípios mais pobres e menores”. Partindo do âmbito federal, “a gente precisaria realmente de mais recursos que chegassem aos municípios para que eles conseguissem fazer essa expansão de escolas com mais facilidade e qualidade”.
 
A Secretaria de Educação de Itaúna aponta que, para chegar à meta do PNE de 2024 para as crianças de 0, 1, 2 e 3 anos, “o principal desafio é a disponibilidade de recursos financeiros federais e estaduais para a construção e a manutenção de novas creches que abarcam a demanda do município atualmente”.