Elaboração e aplicação de um jogo de alfabetização

Em Formação | Letra A 55


     

Letra A • Terça-feira, 01 de Março de 2022, 22:09:00

 
Por Natália Marcelino Dutra*
 
Para ser bem sincera, mesmo sendo apaixonada pela educação e tendo certeza de que queria atuar em sala de aula, nunca tinha parado para pensar sobre a criação de recursos pedagógicos. Não que eu não pensasse sobre minha futura atuação docente. Pelo contrário, já tinha em minha mente as coreografias que as crianças realizariam nas festas juninas, treinava constantemente minhas falas em um contexto de um possível primeiro dia de aula e adorava repensar as atividades que encontrava nos livros didáticos. Acontece que eu nunca tinha parado para pensar, como iria ser, a exemplo do que diz Joaquim Dolz, a engenheira das atividades que aplicaria para meus futuros alunos. 
 
Grande foi a minha surpresa quando percebi que havia na graduação em Pedagogia uma disciplina optativa voltada especificamente para esse fim e que enfatizava a criação de recursos para alfabetização. Sem muitas expectativas e, honestamente, sem pensar muito sobre o que aconteceria no âmbito da disciplina, realizei a minha matrícula. Neste relato, quero demonstrar como as discussões e as práticas proporcionadas pela disciplina me transformaram de uma pessoa que sequer pensava na criação de materiais em uma futura professora apaixonada pela adaptação e elaboração de recursos pedagógicos (sempre que possível, jogos) que levam em consideração o perfil dos alunos, seus interesses e suas necessidades educacionais.
 
Foi no primeiro semestre letivo de 2019 que cursei a disciplina “Laboratório de Alfabetização e Letramento”, ministrada pela professora Daniela Freitas Brito Montuani. Ao longo das 60 horas, foram discutidas questões diversas ligadas à produção, distribuição e aplicação de recursos pedagógicos em sala de aula. Com um foco especial nos jogos voltados para o desenvolvimento da consciência fonológica, a disciplina tinha como principal marca a proposição de elaboração e aplicação de um material voltado para esse fim. Ou seja, as estudantes receberam orientações, por meio de estudos, leituras e compartilhamento de experiências, sobre como poderiam elaborar um jogo adequado ao perfil de crianças reais e tiveram a chance de aplicá-lo em turmas que trabalhavam com a alfabetização – pré-escola e anos iniciais do Ensino Fundamental. 
 
Após o diálogo sobre questões mais teóricas, nós, alunas, tivemos o primeiro contato com as crianças, na busca de informações que pudessem fundamentar a elaboração do jogo. Meu grupo e eu optamos por realizar a atividade em uma escola de Educação Infantil da Rede Municipal de Lagoa Santa (MG). Entre outros motivos, nós o fizemos movidas pelo desejo de entender um pouco da aplicação da proposta de Alfaletrar, sugerida por Magda Soares. Nosso primeiro contato com as crianças foi dedicado à sondagem de seus conhecimentos iniciais e à identificação de possíveis habilidades de consciência fonológica que precisassem ser trabalhadas. A turma era composta por 27 alunos de 4 a 5 anos que, em sua maioria, já haviam atingido o período de fonetização da escrita (três alunos alfabéticos, quatro silábico-alfabéticos e nove silábicos qualitativos). As outras nove crianças estavam no nível pré-silábico. Nesse primeiro contato, tivemos a chance de conversar com a professora e observar a realização de um jogo. 
 
A elaboração do jogo
 
Conhecendo as crianças, seus interesses e suas necessidades, passamos para a etapa de produção do recurso pedagógico. Como disse anteriormente, fomos orientadas nesse processo pela professora da disciplina e pelas leituras. Sem dúvida, essa foi uma das experiências mais marcantes da minha graduação: relacionar conhecimentos teóricos à criação e aplicação de um jogo. Lembro-me com clareza do dia em que, voltando para casa, tive a ideia de criar uma história para contextualizar a execução do jogo. Daí em diante, em contato constante com meu grupo, não parei de pensar no material, nas crianças e nas possibilidades diversas proporcionadas pela experiência de, pela primeira vez, estar em sala de aula realizando uma atividade. 
 
Pela visita prévia, sabíamos que as crianças estavam trabalhando com o tema dos animais silvestres, e, por esse motivo, optamos por criar um jogo com a temática do reino animal. Primeiramente, escrevemos a história intitulada “A festa na selva”, a qual terminava com um convite aos alunos para ajudarem os animais a completarem seus nomes (possibilidade de trabalhar a letra e/ou fonema inicial). A partir daí, empolgadas com a possibilidade de idealizar algo que seria de fato aplicado, nos dedicamos à criação das regras do jogo e do material em si. Utilizamos a plataforma de design gráfico Canva para a produção das cartas, que foram impressas e plastificadas em um tamanho adequado à proposta de um jogo coletivo. O jogo contava ainda com um dado feito em um material possível de ser manuseado pelas crianças. Surgiu, assim, o jogo que chamamos de “Brincando com o nome dos animais”. Nossa animação com a criação só fez aumentar as expectativas pela prática, as quais, adianto aqui, foram totalmente contempladas. 
 
Valendo-se desta materialidade, o jogo tinha como objetivo didático o desenvolvimento de uma série de habilidades ligadas à já mencionada consciência fonológica. A finalidade principal era a de que as crianças compreendessem que, para aprender a escrever, é preciso refletir sobre os sons e não apenas sobre os significados das palavras; que as palavras são compostas por unidades sonoras menores, as sílabas; que as sílabas são formadas por unidades menores, as letras, e que cada fonema geralmente corresponde a uma letra. Além disso, esperávamos que elas fossem capazes de identificar o fonema inicial das palavras e a sílaba como unidade das palavras orais. A percepção de que palavras diferentes podem possuir sons iniciais iguais (aliteração) ou partes sonoras iguais no final (rima) e de que palavras que possuem uma mesma sequência de sons tendem a ser escritas com a mesma sequência de letras também era um alvo a ser atingido com o recurso pedagógico. Principalmente com as cartas que nomeamos de “cartas desafio”, as crianças eram incentivadas a comparar palavras quanto às semelhanças sonoras e a segmentá-las em sílabas.
 
“Adorei o jogo!” – A aplicação do recurso pedagógico
 
Lembro que, no trajeto para a escola, segurando o jogo em minhas mãos em um reflexo da preciosidade que ele representava para mim, estava ansiosa para ver a reação das crianças. Pelo pouco que conhecia da turma, inferi que elas amariam o material. Com essa suposição, cheguei à escola e me preparei para observar a aplicação do jogo que seria feita pela minha colega. Até esse momento, já tinha repassado em minha mente todas as possíveis reações das crianças, em um movimento inexperiente de acreditar ter criado um recurso divertido e, ao mesmo tempo, totalmente adequado às necessidades educacionais das crianças. Em parte, minhas hipóteses estavam corretas: as crianças amaram participar da “brincadeira” e os desafios propostos pelo jogo se relacionavam ao perfil dos alunos, uma vez que não eram tão simples que chegavam a gerar desinteresse e nem tão complexos a ponto de frustrá-las.
 
No entanto, foi com essa experiência que pude compreender a tão recorrente fala dos meus futuros colegas de profissão: “O planejamento é uma coisa, a aplicação é outra totalmente diferente!”. As cartas que criamos com tanto cuidado confundiram as crianças. Ao serem convidadas a pensar em aliterações com a palavra “MACACO”, se entusiasmavam ao procurar palavras que começassem igual a "GORILA". As regras do jogo, pensadas para manter o dinamismo, fugir do tradicional e adicionar jogabilidade, se mostraram confusas. Quando o grupo jogava o dado e a face que saía era a branca, que direcionava os alunos a passarem a vez, toda a animação era rompida. As crianças que poderiam ser convidadas a pensar sobre aliterações, rimas, quantidade de sílabas e sons iniciais de algumas palavras permaneciam sentadas, observando seus colegas realizarem tais reflexões. 
 
Apesar das dificuldades no momento de execução, os aspectos positivos foram mais presentes. Conseguimos pensar em uma organização adequada à sala. Os materiais com os quais o jogo foi feito permitiam que as crianças o manipulassem. E não foram poucos os agradecimentos e os comentários entusiasmados que ouvimos, tanto dos estudantes quanto dos profissionais. Mal posso ver a hora de aplicar os demais conhecimentos que venho adquirindo ao longo da minha graduação à criação de outros recursos pedagógicos. 
 
Finalizo este relato evidenciando algumas das percepções que adquiri com a experiência: as reações das crianças foram melhores e distintas do que a gente imaginava. Elas são seres ativos que agem sobre e com o recurso pedagógico; planejar é de fato diferente de aplicar. As duas ações possuem finalidades distintas e se complementam em um movimento contínuo de planejar novamente a fim de alcançar o que não foi possível com a prática anterior; aplicar um jogo pressupõe o entendimento de que as crianças têm corpos, que se movimentarão e que tentarão vivenciar o recurso. É impossível exigir que elas fiquem quietas e que não tentem experienciar o material das mais diversas formas; nenhuma atividade é um sucesso ou um fracasso completo. Cabe a nós, professoras e professores, analisar os pontos positivos e os que podem ser melhorados, sempre tendo por fundamento o anseio pela proposição de práticas relevantes para as crianças.
 
 
Tenha acesso ao jogo Brincando com o nome dos animais, produzido pelas alunas Fátima Valéria Paixão, Natália Marcelino Dutra e Rosilei Santos Dias no link:
 
 
* Estudante do oitavo período do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista do Programa Residência Pedagógica Alfabetização e Educação Infantil.