Entre a casa e a sala de aula

As trajetórias pessoais e o contexto socioeconômico são alguns dos fatores que fazem cada família ter um jeito próprio de pensar a educação dos filhos. Na relação com a escola, isso se expressa em diferentes situações, da compra do material didático ao lugar onde é feito o ‘para casa’


     

Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 14:21:00

Por Vicente Cardoso Júnior

“Mamãe, na segunda-feira, dia 21/03/2016, faremos uma salada de frutas para comemorarmos o início da Estação do Outono, por isso pedimos a doação de frutas (menos banana)”. Ao receber esse bilhete no caderno do filho, a professora de artes Kate Lane Costa de Paiva sentiu que devia continuar a conversa. Respondeu à coordenadora, sugerindo que “os bilhetes fossem direcionados aos ‘responsáveis’ e não somente à ‘mamãe’” e lembrou ainda que “os ‘papais’ também são responsáveis e que muitas crianças são criadas por outros membros da família”. Antes de devolver o caderno, tirou uma foto e postou no Facebook. Imediatamente o caso ganhou repercussão entre seus amigos, entre desconhecidos e, por fim, a atenção da imprensa.

Kate Lane conta que decidiu publicizar o caso “para que talvez pudesse, assim, incentivar outras mulheres a se posicionarem e falarem”, sem a intenção de prejudicar o colégio onde os dois filhos, de 5 e 7 anos, estudam. “É um colégio particular e religioso e eu já sabia quais eram os valores culturais deles ao colocar meus filhos lá. Mas isso não me impede de falar! Isso não acontece só nessa escola específica e nem só na escola”, reflete. “Também resolvi falar porque sou professora e este debate de gênero está muito presente na educação. Então, me assustei que as escolas ainda mandassem bilhetes se referindo somente à mãe”, completa.

Na história do bilhete, a relação entre família e escola ganhou uma projeção incomum. A professora da Faculdade de Educação da UFMG Tânia Resende de Freitas, pesquisadora do Observatório Sociológico Família Escola, relembra esse caso para mostrar como as formas de participação da família na escola são variadas e se modificam conforme o contexto histórico e social. Por isso, mesmo que se possa falar em ‘relação família-escola’, Tânia ressalta a necessidade de olhar para as especificidades de cada situação. “Claro que a relação tem algumas características gerais, e as instituições também: são duas instituições ligadas basicamente pelo fato de ambas serem responsáveis pela educação das crianças, compartilharem essa responsabilidade”, afirma. “Mas, na verdade, a ‘família’ são famílias, e [essa instituição] vem passando no mundo contemporâneo por muitas transformações. E a escola também”, completa.

Para apresentar algumas dessas variações, o Letra A buscou conhecer, nessa reportagem, as realidades de cinco famílias e os modos como elas se relacionam com as escolas e os estudos dos filhos. 

A mesma escola, outra infância

“Hoje eu vou ter que levar meu caderno de Português, que é da Elsa [personagem do filme Frozen]. O de Matemática, que é da Chiquititas [novela infantil brasileira]...”. Assim Giovanna, 9 anos, vai apresentando o conteúdo de sua mochila, que ela precisa conferir diariamente, conforme as aulas do dia seguinte. Em seguida, mostra o restante do material escolar, que fica guardado num armário que ela divide com a mãe, Wanessa Marla Dias, que estuda Pedagogia e também ocupa sua parte com materiais de estudos. As duas também dividem o quarto, na casa da família em Ribeirão das Neves (MG), onde também moram os pais e o irmão de Wanessa.

Como Wanessa trabalha durante o dia e estuda à noite, quem mais acompanha a rotina escolar de Giovanna é a avó, Ana Maria Dias. Mesmo se encontrando pouco com a filha de segunda a sexta, Wanessa busca valorizar a relação com a escola. É a filha quem conta: “Minha mãe fala assim: ‘Giovanna, você tem que estudar bastante, para quando crescer, você não ter a vida igual a minha, acordar de manhã cedinho, cedinho, para chegar de noitaço, então tem que estudar bastante’.” Além do discurso de valorização dos estudos, Wanessa também busca estimular a filha de outras maneiras. Se Giovanna quer aquele caderno com um personagem na capa, ou um apontador com uma característica especial, Wanessa se esforça, respeitando as condições financeiras da família, para que a filha possa ter essa satisfação.

Do armário, Giovanna retira e mostra o último livro que ganhou da mãe, O Pequeno Prínicipe – “estou na página 37!” Wanessa tenta colocar a leitura literária na rotina da filha, mas a garota admite: “tem vezes que eu não leio, já vou direto para o computador”. Este é o assunto que mais faz a avó, que é de falar pouco, querer opinar. “Minha preocupação é porque ela está perdendo a infância dela, acho que está perdendo nesse sentido de não brincar”, diz Ana Maria. Ao mesmo tempo, a avó reconhece que a neta não tem tanta companhia, nem em casa nem na vizinhança, e que “brincar sozinha para ela não é muito interessante”.

Na infância de Wanessa, a mesma rua – que só há pouco tempo foi asfaltada – vivia cheia de gente brincando. Já para Giovanna, a escola tem sido o principal espaço de socialização. A Escola Estadual Henrique Sapori é a mesma em que Wanessa cursou todo o Ensino Fundamental. A estudante de Pedagogia encara a instituição como uma das melhores da região, tanto na qualidade de ensino como em segurança. “Lembro que, na minha época, o porteiro era muito rígido, não deixava o povo matar aula, não deixava o pessoal que mexia com droga ficar rodeando a escola.” “Hoje em dia também a segurança policial melhorou muito do que há 25 anos”, acrescenta Wanessa, que lembra dos altos índices de criminalidade do município onde moram. A escola fica no mesmo quarteirão de casa, o que facilita para a filha ir sozinha à escola: “todo mundo conhece a gente, conhece a Giovanna”. Mas Wanessa destaca que essa comodidade não é o principal critério para manter a filha ali: “se fosse perto e fosse uma escola ruim, eu ia me virar, dar um jeito de arcar com essas despesas extra de uma escola particular, e levaria até para o Centro de BH, se precisasse”.

 


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