Entre a casa e a sala de aula (2)


     

Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 14:28:00

Uma escola que ensine a perguntar

Antes de a entrevista começar, a servidora pública Melissa Macena e o empresário Gustavo Macena relatam sua última experiência como personagens de uma reportagem. Numa matéria de TV, eles representariam a família que cria “menino como menino e menina como menina”, em comparação com outra, que teria criado os filhos sem distinção de papéis masculinos e femininos. Receberam a reportagem em sua casa, em um condomínio fechado em Nova Lima (MG), apresentaram os filhos – Beatrice, 9 anos, e Eduardo Henrique, 7 – e um pouco de sua rotina, e Gustavo garante que não mudaria nem uma palavra do que disse na entrevista. Mas a montagem, segundo a avaliação do casal, foi traumatizante: fez com que parecessem “totalmente retrógrados, de outro planeta”, brinca Melissa.

O preâmbulo, apesar do trauma, só mostra que o casal jovem e bem-sucedido tem satisfação em poder falar sobre a educação dos filhos: afinal, estão ali, poucos meses depois, para uma nova entrevista sobre o tema. Contam, primeiro, suas trajetórias escolares e como elas influenciaram o momento de encaminhar os filhos para a escola. Melissa, que até a 4ª série estudou em uma escola construtivista, queria matriculá-los em uma do mesmo modelo, e quase conseguiu levá-los para a mesma onde estudou – mas a instituição fechou bem na época. Gustavo, filho de professores, cresceu e estudou em São Paulo (SP), até a 8ª série em escola pública, para, no Ensino Médio, mudar-se para uma particular, que ele mesmo escolheu. Melissa buscava, então, uma escola que “ensina o aluno a gostar de estudar”. Com um discurso menos apaixonado pelas escolas em que estudou, Gustavo buscava uma “que ensina a criança a perguntar e não a responder tudo, a ter um senso crítico muito maior do que eu tive”. As expectativas convergiram para a escolha de uma escola canadense de ensino bilíngue em Belo Horizonte.

O casal distingue bem os papéis que defendem ser da escola e da família. Para eles, é em casa que as crianças recebem sua formação ética e moral. “O homem e a mulher quem está formando somos nós, e o conteúdo que esse homem e essa mulher vão praticar lá na frente, a escola é a melhor provedora disso. Por isso que escolhemos uma escola que tem pouco conflito dentro daquilo que acreditamos”, explica o empresário. O casal ressalta que as situações em que apareceu algum conflito foram poucas até hoje, e a mediação, tranquila. Melissa exemplifica citando as diferentes proposições sobre a origem do homem: os pais defendem o criacionismo, mas na escola os filhos aprendem o evolucionismo. “Mas quando eles vêm com o questionamento para dentro de casa, a gente coloca: ‘Na escola ensina assim, mas olha aqui no quê que nós acreditamos’. Sem ficar também menosprezando o ensinamento da escola”, relata.

Além de família e escola, Gustavo elenca outras frentes que contribuem para a educação dos filhos. “A cultura, com viagens; o esporte, o lazer, e o desenvolvimento em cima disso; a igreja, pelos valores que traz, como liderança e senso de pertencimento.” Melissa completa: “A gente não transfere essa obrigação de educar, de criar, para nenhum professor que está envolvido na educação deles, tanto na escola, como fora da escola, como na igreja. Mas temos esses ambientes que nos ajudam a mostrar na prática para eles o que estamos ensinando na ‘teoria’ dentro de casa e um pouco na prática, com o nosso exemplo.”

Cada um em seu tempo e em sua dinâmica

Era o primeiro dia da votação na Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constuticional (PEC) 241, o que inquietava o educador Maurício Moreira. O pai de Maxwell (o Max), de 10 anos, e de Matheus, 8, considera que, se aprovada a PEC, são bastante prováveis cortes em programas de assistência a que os dois filhos têm direito. “Os primeiros que perdem nas políticas são as pessoas com deficiência.” Em 2010, os dois filhos – primeiro Max e logo depois Matheus – foram diagnosticados com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Naquele mesmo ano, Maurício passou a morar sozinho com os filhos e é quem cuida de sua educação – com algumas ajudas eventuais da mãe dos garotos e de sua mãe.

Desde a Educação Infantil e agora no Ensino Fundamental, os dois garotos estudam no mesmo grupo escolar da rede municipal de Belo Horizonte. Além da diferença de dois anos de idade, suas características distintas – muitas delas ligadas ao TEA – se expressam no processo educacional. O pai conta que Max, com pouco mais de 2 anos, deixou a creche por um tempo, porque batia muito a cabeça na parede e os profissionais não sabiam lidar com a situação. “E hoje é outro menino: participa, conhece toda a rotina, aprendeu a ler e escrever com os recursos da escola: não precisaram inventar coisas diferentes para ele aprender”, relata Maurício. Com Matheus tem sido diferente, já que ele ainda não fala: “A escola usa comunicação alternativa e vai tentando alguns mecanismos para desenvolver os conteúdos programáticos – está aquém do que a gente gostaria, mas ele tem o tempo e a dinâmica dele.”

As diferenças entre eles também se expressam na socialização: Max é mais tímido, mas a possibilidade da comunicação oral tem ajudado a vencer a inibição – tanto que, em setembro, ele fez uma apresentação no 1º Encontro Brasileiro de Pessoas Autistas. Matheus ainda não conversa, mas é muito afetuoso, o que ajuda na interação: durante a entrevista, abraçava o pai a toda hora e foi até os dois repórteres mexer em seus cabelos. O pai explicou que essa sua forma de socialização, que ainda é mais infantil, motivou-o a buscar, por ordem judicial, a retenção do filho na Educação Infantil por mais dois anos além do que define a legislação. “Existem várias famílias hoje em Belo Horizonte querendo reter os meninos, o que eu acho que caberia, com as adaptações que são possíveis fazer na educação, porque cada um tem seu tempo para se desenvolver”, defende Maurício, que é vice-presidente regional da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo.

Flexibilização do currículo, mais adaptações e mais atenção individualizada são algumas das principais bandeiras de Maurício para a educação inclusiva. No atendimento educacional especializado (AEE), por exemplo, ele acredita haver boa qualidade, porém com frequência muito baixa – Matheus, atualmente, só tem 1 hora por semana com a professora do AEE. Maurício também defende mais investimento na avaliação das crianças com deficiência, “porque a gente não consegue quantificar se está piorando, se está melhorando”. Formação profissional é outro nó: com a grande rotatividade no quadro docente, cada novo professor chega inseguro e leva muito tempo para se preparar. “O professor já chega com medo e a gente, pai, não é fácil: a gente cobra, a gente pega no pé!”

 


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