Entre a casa e a sala de aula (3)


     

Letra A • Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016, 14:33:00

Valorização do conhecimento dos pais      

Do lado de fora de casa, facão na cintura, o lavrador Juvenal Barbosa conta que aquela é a roça onde nasceu, cresceu e constituiu sua família. Hoje com 48 anos, só saiu dali para algumas temporadas no estado de São Paulo – para trabalhar em usina – e agora, há 3 anos, quando teve que se mudar para a cidade de Araçuaí (MG), a 14 km de distância, porque a vida no campo não estava dando para o sustento.

Juvenal só estudou até a primeira metade do Ensino Fundamental: “aqui na época não tinha escola, era só até a 4ª série”. Estudar na cidade não era viável: “não tinha transporte nenhum, a gente tinha que se virar”. O contexto social também era outro – “o pai preferia que a gente trabalhasse” –, enquanto hoje ele considera que a escola “trabalha com a família”, deixando os pais mais conscientes da importância do estudo. Outro fator que favoreceu a maior escolarização da geração de seus filhos foi a criação de mais escolas no campo. No entanto, foi examente o movimento contrário, ocorrido recentemente na região, que forçou a família de Juvenal a migrar para a cidade: sua esposa é professora e, com o fechamento de algumas escolas da zona rural, ela foi transferida para a zona urbana. Juvenal a acompanhou e também arrumou emprego por lá, mas continua ligado à vida na roça: “trabalho um pouquinho lá e um pouquinho aqui”.

Esse vínculo passou para o segundo filho, Jean Carlos. Tanto que hoje, para estudar, o rapaz faz um trajeto incomum: vai da cidade para o campo. Na passagem para o Ensino Médio, ele quis estudar na Escola Família Agroecológica de Araçuaí (EFA Araçuaí), instalada há 7 anos em uma fazenda próxima da propriedade rural da família. “Morar dentro da cidade ele não adaptou muito, não. A própria escola onde ele estudou: estudava, mas não tinha aquele interesse que tem com hoje aqui”, conta o pai. O projeto da EFA despertou o interesse de Juvenal antes mesmo da inauguração, levando-o a participar dos primeiros encontros no local onde a escola seria construída: “A gente fez reunião lá mesmo: não tinha casa, não tinha nada, só o terreno”. Logo após a inauguração, a filha mais velha foi estudar lá.

A EFA funciona em sistema de pedagogia da alternância: os alunos ficam em internato por 15 dias e, nos 15 seguintes, em casa, têm atividades a serem desenvolvidas. Muitas delas ligadas ao campo. Como a família não mora na zona rural atualmente, Jean Carlos acompanha o pai nas idas à roça, onde desenvolve a aprendizagem iniciada na escola: “Agora mesmo está ali um vidro, 50 litros de fertilizante, que ele está preparando.” O conhecimento é bastante construído pela troca, com a família e com a comunidade: “Às vezes tem coisa que ele não sabe, e ele pergunta para mim; quando eu não sei, mando ele perguntar para outra pessoa que às vezes sabe”. A participação das famílias na EFA vai além da construção dos conhecimentos, já que a escola é regida por uma associação formada pelos pais dos alunos. Este ano, Juvenal assumiu a função de tesoureiro.

Antes da despedida, o lavrador ainda quer mostrar algo para o diretor da EFA, Roviére Vieira Sá, que acompanhava a reportagem. Em uma parte da propriedade, perto da estrada, nasceu um capim que o lavrador não conhece, e ele quer que o diretor leve para a escola, para testar como alimentação para os animais que são criados lá. No local, Juvenal desembainha o facão, enche a mão e corta um punhado do capim desconhecido, ato que repete cinco vezes: “só um pouco para ver se os bichos comem ele bem”.

Por menos formatação e por uma inclusão real

Antonio é só um ano e meio mais velho que a irmã Clara, mas já tem um assunto sobre o qual ele pode conversar com certo ar de experiência. “Você vai ver quando tiver ‘para casa’: é uma coisa muito chata! Você até aprende algumas coisas...” Quem reproduz a fala é a psicóloga Silvia Esteves, uma das mães das crianças. Segundo ela, o conselho de irmão mais velho é só um dos fatos que, desde o início do ano, têm marcado a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental na vida de Antonio e da família. “É uma mudança brutal, para a criança e para a família, pelo menos da Educação Infantil que a gente estava.” “O Antonio, que chegava aqui todo pintado de carvão, não tem mais carvão pra pintar!”, brinca Silvia.

O lugar do ‘para casa’ começou sendo a sala, passou para o escritório, mas logo as mães decidiram construir uma bancada no quarto do garoto. Além do local, vem a preocupação também com a postura: “para sentar e estar, não tem jeito, tem que ter um centramento”, afirma Sílvia. “Essa história do ‘para casa’, para mim, é muito sintomática”: a historiadora Regina Helena Alves Freitas – esposa de Sílvia e a ‘mãe Lena’ das crianças – interrompe a preparação do jantar para apresentar sua visão sobre o tema. Em reuniões de que participou para escolherem a nova escola do filho, Lena ouviu alguns pais cobrarem – “por que não tem ‘para casa’ todo dia?!” –, conheceu o argumento de que “é para que a família fique perto das crianças” e até assistiu a uma mãe admitir – “eu preciso manter o controle sobre o meu filho!”. Sua sensação é a de que, já nessa etapa, os pais estão “enlouquecidos, preocupados com o filho indo fazer vestibular daqui a 14, 15 anos”. Ela, que está na outra ponta (é professora universitária), avalia que, por esse sistema, “os meninos chegam lá [na universidade] formatados de uma maneira que não funciona”.

A questão do ‘para casa’ esteve no centro da escolha da atual escola de Antonio. Mas muitos outros critérios estiveram envolvidos tanto nessa busca quanto na anterior, por uma escola de Educação Infantil. “Escola perto, que não tivesse van”, pontuou Lena, porque é importante “criar uma série de laços com o filho adotivo” - daí a escolha por uma escola em que tivessem “condições de levar, de buscar e de estar presente em tudo”. “Tem que ser permeável à participação da família, mas uma participação que tem que ter um limite”, afirma Silvia, esclarecendo que esse limite diz respeito às escolhas pedagógicas: “se [uma decisão da escola] afeta a gente de alguma forma, a gente até pode olhar, pensar, discutir e conversar com a escola, e a escola ouvir, e então tomar as decisões que achar melhor”. Outros critérios apareceram no decorrer da entrevista, como “nem tradicional, nem religiosa” e “que tenha terra, tenha gramado”.

Um pouco por esse caminho, chegaram à primeira escola das crianças. “E foi terrível!”, resume Lena. “Era uma escola que dava conta da inclusão de determinado tipo de criança – com autistas tinham uma série de trabalhos legais –, mas a inclusão da diferença para eles era difícil – de alunos negros e dos nossos filhos”, explica. Além de observarem uma distinção no tratamento com cada filho, as mães perceberam que o fato de formarem um casal homoafetivo reverberava na escola. Antonio foi agredido por colegas mais velhos, e então as mães tiveram uma conversa com a coordenação, na qual receberam a sugestão de matriculá-lo numa oficina de futebol e, ainda, o alerta: “você sabia que o Antonio gosta da cor rosa?”. Vieram as férias e, na volta, a troca de escola. Na nova instituição (que, como a anterior, só oferece Educação Infantil), em várias ocasiões a estrutura familiar veio à tona, mas “ninguém se assustou, ninguém transformou isso em nada”, conta Lena. Uma vez, uma criança falou para ela: “fiquei sabendo que o Antonio tem duas mães... mas eu tenho cinco!”


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