Entrevista: Antônio José Lopes, Eliane Scheid Gazire e Lilian Nasser (1)


     

Letra A • Quinta-feira, 13 de Agosto de 2015, 15:21:00

As dificuldades encontradas por alunos e professores no processo de ensino e aprendizagem da Matemática são velhas conhecidas do ambiente escolar. O aluno, muitas vezes, não consegue entender a utilidade da Matemática que a escola ensina. O professor, ao desconhecer possibilidades pedagógicas mais produtivas, também constrói uma relação complicada com a disciplina. Para falar sobre o tema, o jornal Letra A conversou com três docentes e pesquisadores em Educação Matemática envolvidos com o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic): Antônio José Lopes, autor de vários materiais didáticos para o ensino de Matemática, dentre eles, o caderno 8 do segundo ano do Pnaic; Eliane Scheid Gazire, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), coordenadora de Matemática do Pnaic na UFMG; e Lilian Nasser, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também coordena a área de Matemática do Pnaic na instituição. Nessa entrevista coletiva, eles refletem sobre as formações básica e continuada dos professores que ensinam Matemática nos anos iniciais, a relação do aprendizado da disciplina com as linguagens verbais e as possibilidades de se trabalhar a Matemática como campo interdisciplinar.

 

Qual o lugar ocupado pela Matemática hoje nos anos iniciais do Ensino Fundamental? Como é a relação do professor dessa etapa educacional com a disciplina?

Antônio: A Matemática está presente em todos os aspectos da vida social. No cotidiano, no trabalho e nas ciências. Ela é tão vital quanto a alfabetização; é uma ferramenta essencial para o exercício da cidadania. O futuro está sendo desenhado pela Matemática e não há futuro sem ela. Entretanto, a maioria dos professores não conhece essa dimensão e só ensina a disciplina porque ela faz parte do currículo. Muitos deles conhecem apenas a Matemática que aprenderam na escola e isso não é o suficiente para despertar o raciocínio e o desenvolvimento das crianças. As crianças têm que, desde cedo, gostar de raciocinar e valorizar a Matemática que aprendem, como uma lente que permite ver melhor o mundo em que elas vivem e uma ferramenta poderosa para resolver problemas.

Lilian: Nesses primeiros anos do Ensino Fundamental, infelizmente, a Matemática não recebe a importância que deveria receber. Porque nos primeiros anos é que se consolidam as bases para o manuseio, o uso e as aplicações da Matemática. As professoras dos anos iniciais vêm, em geral, de cursos de Pedagogia, curso Normal ou Normal Superior, que não dão ênfase à formação em educação matemática. Então, por isso, muitas delas não gostam, não têm afinidade e nem segurança para ensinar Matemática. Acabam ensinando apenas o sistema de numeração decimal, o uso das operações, sem explicar o porquê daquelas operações e o porquê daqueles algoritmos. Logo, os alunos aprendem mecanicamente e muitos deles passam, a partir disso, a ter uma certa aversão à Matemática, que vai ser vista na vida escolar futura o tempo todo.

Eliane: De uns anos para cá, temos começado a assumir uma postura de maiores possibilidades de trabalho com a Matemática nas séries iniciais, a ter a perspectiva de um trabalho interessante para o professor e para o aluno. Isso porque os professores das séries iniciais não possuem formação em Matemática, mas uma formação generalista. Quando conversamos com os professores que dão aula nas séries iniciais e pedimos para eles contarem sobre a relação deles com a Matemática, em geral ouvimos que foi uma relação difícil. A maioria não gosta, tem medo da Matemática, devido a experiênciais desagradáveis na escola com a disciplina. Então, buscaram cursos que não dariam ênfase nela e, quando chegam à escola, são colocados para trabalhar com as séries iniciais e têm que trabalhar com a Matemática também. Percebemos que, com as capacitações, com os programas do governo – inclusive o Pnaic – os professores estão começando a ter um novo olhar para o ensino da Matemática, um contato com novas possibilidades de trabalhar, às quais eles nunca tiveram acesso antes e nem sabiam que existiam.

 

Como avaliam a formação do professor dos anos iniciais em relação ao ensino da Matemática? Os cursos de Pedagogia têm focado nas questões adequadas da educação Matemática?

Lilian: Não podemos generalizar, mas a grande maioria dos cursos de Pedagogia tem muito pouco de educação matemática. Nas décadas de 60 e 70, existiam os cursos de Magistério (Científico, Clássico e Normal). Eu, por exemplo, cursei o chamado curso Normal. Na época, ele era um curso extremamente forte, e o que eu sei de Didática da Matemática no que diz respeito aos anos iniciais, eu aprendi no Normal - mesmo tendo feito depois licenciatura, bacharelado, mestrado em Matemática e doutorado em Educação Matemática. O professor saía do curso com uma perspectiva de como trabalhar em sala de aula. Mas, hoje em dia, o Normal passou a ser profissionalizante e os cursos de Pedagogia têm que dar atenção a todas as disciplinas. Então, o máximo que se tem – quando se tem – é uma disciplina de 4 horas semanais de educação matemática ou didática da Matemática, que não é suficiente. Por isso, o Pnaic, que fornece uma formação continuada para os professores alfabetizadores, tanto na Língua Portuguesa como na Matemática, é fundamental.

Antônio: A formação, em geral, é precária. Mas isso não significa que não há saídas. Existem grupos dentro de universidades e de algumas secretarias de educação desenvolvendo projetos sérios, grupos comprometidos com a tríade ensino-pesquisa-extensão. No interior do Brasil, por exemplo, praticamente todas as universidades públicas e comunitárias, cujo trabalho de extensão é voltado para a comunidade, estão fazendo trabalhos de ótimo nível na formação de professores. Hoje existem programas de mestrado e doutorado em Educação Matemática com perspectivas de qualidade e alto nível. O problema é outro, é de escala. Somos cerca de 2,5 milhões de professores espalhados num território de mais de 8 milhões de km2. Não é fácil resolver um problema que vem desde o império, num país de dimensões continentais como é o Brasil.

 

Como a formação continuada pode corrigir as carências da formação inicial neste campo? O que uma formação em Educação Matemática deve priorizar?

Eliane: A formação continuada é benéfica porque ela pode trabalhar com o que está acontecendo, naquele momento, na sala de aula. Então, quando o professor vem para uma formação continuada, ele está buscando formas para atuar no contexto da aula. E é ele quem está lá. Então facilita quando ele vê uma proximidade do que ele precisa aprender com o que ele já tem em mãos e com o que está sendo ensinado. Eu já tive alunos do curso de Matemática, que trabalharam com a metodologia de Matemática, e que já me procuraram falando assim: “Eliane, este ano eu estou dando aula pra uma turma de 6º ano, mas os meninos não sabem fazer divisão. Olha, eu sei divisão, mas eu não sei ensinar os alunos a dividir”. Então, o professor sente essa dificuldade, e ele só vai ver essa dificuldade na prática, lá em sala de aula, que é diferente de quando ele está lá cursando a licenciatura. Aí, na formação continuada, ele pode discutir essas questões.

Antônio: A formação continuada contribui, mas não é a tábua de salvação. É necessário sempre mais. Entretanto, com as tecnologias de comunicação e a melhoria gradativa das ferramentas de ensino à distância, penso que é possível dar muitos passos à frente. Sobre o que deve ser priorizado, a pauta é extensa, mas está claro que o movimento deve ser na direção de uma “Matemática para Todos”. O slogan é velho, mas foi o responsável por um grande avanço no ensino da Matemática a partir dos anos 80. Hoje não cabe mais a Matemática elitista que visava somente pescar “gênios”, futuros matemáticos. A educação matemática na escola real deve levar em conta a cultura e as necessidades da comunidade onde ela está inserida. Deve privilegiar as relações da Matemática com a realidade, com foco no cotidiano dos alunos, do que é significativo para eles. Não quer dizer que a Matemática deva ser exclusivamente utilitária, mas não se pode ignorar o dia a dia e os problemas autênticos. Além disso, ela não pode ser apresentada de modo fragmentado, exageradamente formal, como aparece em apostilas. Não se aprende Matemática decorando definições e sendo adestrado a fazer contas; aprende-se problematizando e resolvendo problemas instigantes que mobilizem a mente das crianças.

 


Continue lendo

Entrevista: Antônio José Lopes, Eliane Scheid Gazire e Lilian Nasser - Parte 2