Entrevista: Antônio José Lopes, Eliane Scheid Gazire e Lilian Nasser (2)


     

Letra A • Quinta-feira, 13 de Agosto de 2015, 15:30:00

Tem crescido o apelo pela interdisciplinaridade no Ensino Fundamental, mas muitos professores demonstram dificuldades em relação a essa forma de ensino. Como a Matemática pode ser inserida em um ensino interdisciplinar?

Eliane: O ensino atual da Matemática tem dado um destaque especial a dois princípios norteadores para a organização de um currículo por competências: o da contextualização e o da interdisciplinaridade. São princípios que têm o objetivo de favorecer a atribuição de significados aos conteúdos matemáticos. A contextualização enfatiza a necessidade de o ensino da Matemática estar articulado com as várias práticas e necessidades sociais. Já a interdisciplinaridade preconiza um ensino aberto para as inter-relações entre a Matemática e as outras áreas do saber. A interdisciplinaridade ainda é pouco compreendida. É uma questão complexa que exige do professor um amplo conhecimento da sua área de atuação para que ele possa trabalhar adequadamente com a interação de saberes.

A Matemática se insere em um ensino interdisciplinar quando os alunos são colocados frente a situações que propiciem a exploração e a problematização a partir de contextos ricos de significado que possam ser matematizados. Trabalhar com projetos é uma das possibilidades de viabilizar o trabalho interdisciplinar. Os projetos possibilitam contextos que geram a necessidade e a possibilidade de organizar os conteúdos de forma a lhes conferir significados. Para que isso aconteça, é necessário que o professor identifique que projetos exploram situações-problema cuja abordagem pressupõe a utilização da Matemática, e em que medida oferece subsídios para a compreensão dos temas envolvidos.

Lilian: Como os professores não são formados nessa perspectiva da interdisciplinaridade, existe a dificuldade. O Pnaic concretia um grande passo nessa questão porque, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, nós funcionamos como o MEC sugeriu. Em cada turma de formação tinha um formador de Matemática e um de Língua Portuguesa atuando juntos, e isso foi um desafio para eles. Eles não se conheciam, não sabiam a formação do outro, quais afinidades tinham, e tiveram que planejar juntos a formação de orientadores. Só depois dessa orientação de estudo realizada, eles foram atuar com os professores alfabetizadores dos municípios. Para a aplicação da interdisciplinaridade na sala de aula, um dos caminhos é desenvolver atividades que envolvam a Matemática com a Língua Portuguesa, com a Geografia, com todas as outras disciplinas e, assim, gerando novos conteúdos. Por exemplo, desenvolver jogos em que os alunos tenham de entender as regras e desenvolver estratégias para ganhar o jogo. Brincando através da Matemática, eles desenvolvem o pensamento abstrato e a argumentação.

Antônio: A dificuldade não pode ser usada como escudo para não trabalhar de modo interdisciplinar. É fato que os professores ainda não sabem trabalhar dessa forma, pois não aprenderam na escola nem nos seus cursos superiores. Infelizmente, a maioria deles aprendeu uma Matemática com conteúdos e métodos do século XIX, que privilegiam a decoreba em detrimento do raciocínio. Entretanto, há livros didáticos - cujo foco é a Matemática do cotidiano - e também séries de TV, como Matemática em Toda Parte, da TV Escola do MEC, em que os conteúdos são tratados a partir de contextos como cozinha, alimentação, saúde, higiene, futebol, transportes, meio ambiente, finanças, comunicações, o bairro, a feira, o mercado etc.

 

Por falar em interdisciplinaridade, qual seria a possível relação do aprendizado da Matemática com a aquisição das linguagens oral e escrita?

Eliane: Na aula de Matemática, trabalhamos com várias linguagens. A oral e a escrita são as predominantes. Acontece que, na nossa tradição, as aulas de Matemática em geral não permitem um espaço para a criança se expressar, elas são pouco solicitadas e quem fala muito é o professor. Mas é importante que levemos a criança a falar sobre o que ela está fazendo, o que ela entendeu, como fez e de que forma está pensando. Às vezes, a criança fala uma palavra, mas não entende o seu significado. Há algum tempo, fui a uma escola e a professora estava discutindo com os alunos do 5º ano uma regra de jogo. Uma das regras tinha a palavra obrigatório. Ela perguntou aos alunos qual era o significado daquela palavra e um dos alunos respondeu que significava obrigado. Ela aceitou a resposta e continuou. Até que ela teve um estalo e voltou a perguntar: “Mas o que é obrigado?”, e ele respondeu: “É o que falamos para agradecer às pessoas”. Se a professora não tivesse percebido esse problema, o aluno ia ter uma dificuldade imensa em entender o que estava sendo proposto no jogo. Por isso, hoje falamos que ler e escrever são competências de todas as áreas, pois cada área utiliza a linguagem usual, mas utiliza, também, uma linguagem que é própria daquela ciência. Raiz, por exemplo, em Biologia, pode ser raiz de dente ou de planta; em Português, é prefixo de palavra; já em Matemática, pode ser quadrada ou de polinômio. A mesma palavra tem vários significados, dependendo do contexto.          

Lilian: Ao desenvolver as atividades matemáticas, o professor deve incentivar os alunos a ler e interpretar o problema, desenvolver a ideia já descrevendo seu raciocínio. É importante que o professor estimule bastante o aluno a escrever na Matemática, e não digo só números e operações, mas fazer o registro de todas as atividades: como ele pensou, como desenvolveu e quais estratégias ele usou para vencer o jogo. Isso, no caso do jogo, mas em qualquer atividade é importante que o aluno, ao final, registre como raciocinou.

Na oralidade, o primeiro passo do estudante é o desenvolvimento do cálculo mental. Porque o aluno irá raciocinar, resolvendo o problema mentalmente com as operações e cálculos, e deve explicitar isso, descrevendo para toda turma a maneira como ele pensou para resolver o problema. Cada aluno que pensou de uma forma diferente da original deve dividir com a turma.

Antônio: De um certo ponto de vista, a Matemática é uma linguagem. Ela é objeto, ferramenta, processo e produto. Aprende-se Matemática fazendo relações, e essas relações a gente faz quando lê o mundo e enfrenta problemas. Esses problemas estão nas coisas do dia a dia, nas outras disciplinas, e em um conjunto de situações que se comunicam por meio de uma linguagem, visual ou escrita. A impregnação entre Matemática e linguagem é, por excelência, de natureza interdisciplinar.

 

No aprendizado da Matemática, em muitos casos a criança não aprende, apenas decora. Como trabalhar para que essa criança consiga realmente construir o conhecimento? Como tornar a Matemática “mais interessante”?

Antônio: Isso não é natural. A decoreba é induzida pelos adultos, sejam eles pais ou professores. Reflete uma concepção de aprendizagem que não se sustenta. A decoreba deve ser questionada e o raciocínio autêntico, valorizado. Uma boa escola foca no processo da investigação e da descoberta, no envolvimento com situações desafiadoras e na valorização das interações. As crianças não se entediam quando trabalham com coisas interessantes. Quando têm a sensação de ter descoberto algo, seus olhos brilham. Não tem fórmula mágica nem pirotecnia, basta resgatar o que poderia ser chamado de pedagogia do bom senso. E existem bons materiais sobre o tema.

Eliane: No primeiro momento, você vai trabalhar a partir de situações que levem o aluno a construir um conceito. O decorar, o memorizar é importante, mas é o final da história. Você tem um caminho a seguir até chegar lá. E quando a Matemática é bem trabalhada, se você propõe um problema, se o aluno se encontra em situações em que ele se sente desafiado, seja em um jogo ou outras situações propostas, ele vai construindo aquele conceito e aí, sem problemas, ele vai chegar ao aspecto da memorização, mas nunca começando pela memória.

Lilian: Temos que ajudar a criança a construir o conhecimento. Assim, ela chega ao resultado por descoberta própria. A ideia é nunca dar a resposta pronta e sim deixar que a criança a descubra sozinha. Chamamos isso de Construtivismo. Ela pode iniciar fazendo algoritmos próprios, às vezes muito mais longos que o algoritmo usual, mas é da maneira que ela entende que ela vai executar. Aos poucos, ela vai perceber sozinha que é melhor optar por um algoritmo mais econômico. É nesse momento que ela aprendeu, quando adquire conhecimento construído por ela própria. É importante que a criança entenda que é possível gostar da Matemática, realizando atividades agradáveis. O professor deve evitar apavorar o aluno, usando a Matemática como se fosse uma arma de ameaça, de reprovação e nota baixa. Deve propor problemas que ele goste de resolver, desafios e brincadeiras que coloquem um grupo contra o outro para competir e estimulá-los.

 


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