Entrevista com Alice Áurea Penteado Martha

A professora da Universidade Estadual de Maringá falou ao Letra A sobre a história da literatura infantil no Brasil


     

Letra A • Quinta-feira, 31 de Março de 2016, 17:19:00

Por Natália Vieira

Em que determinado momento e contexto surge a especificação “literatura infantil” na literatura mundial?

Isso começa com a ascensão da burguesia, com a literatura infantil servindo como veículo para sistematizar e promover as ideias burguesas. Surge nessa transformação da sociedade da realeza para a família burguesa, então a necessidade de se criar a escola e uma literatura que transmitisse esses ideais burgueses para as crianças. Os primeiros textos a serem adaptados na verdade não eram infantis. Eram textos para adultos que circulavam oralmente – os contos de fada, que tinham violência, morte, problemas de toda sorte. Esses temas muito fortes foram sendo abrandados e as crianças foram então recebendo esses contos como a primeira, digamos assim, produção para criança. 


Quando e em que contexto a literatura infantojuvenil chega ao Brasil? Quais agentes contribuem para isso?

Foram a tentativa de modernização da sociedade brasileira, a necessidade da criação de escolas, a urbanização do país. Com aquelas levas de imigrantes que vinham dos meios rurais para a cidade, havia necessidade de criação de escolas, e a abertura delas propiciou também esse voltar-se à literatura para crianças. O principal difusor disso foi Olavo Bilac, que, nesse final do século 19, começo do século 20, com a publicação das Poesias Infantis (1905) proporcionou esse fomento à literatura infantil. [Era] voltada à escola e para a formação do cidadão, que era o que ele queria.

 

Como a literatura infantojuvenil no Brasil passa a ter produções realizadas no país? Como ela se desenvolve ?

Ela se desenvolve, principalmente, a partir do século XX. O grande iniciador disso é Monteiro Lobato, que fomentou essa criação depois do sucesso do Sítio do Picapau Amarelo. Ele também foi o grande produtor e editor dessa produção literária para crianças. Há também, a partir dos anos 60, o grande fomento à industrialização, quando o Brasil começa a criar editoras, e essas editoras então passam a se preparar para publicar livros infantis. Isso acontece a partir dos anos 1940, 1950 em diante, quando também escritores para adultos vêm para o ramo infantil com uma possibilidade de produção maior. Essa necessidade de edição e o Brasil a entrar no capitalismo, quando ele entra na industrialização - inclusive a industrialização livresca - é que dá o grande fomento à produção infantil no Brasil. 

 

Que mudanças significativas aconteceram na literatura infantojuvenil nos últimos 30 anos?

Principalmente, a visão da literatura como um objeto cultural. Começa nos anos 1970, quando se tem, por exemplo, O Menino Maluquinho. Os livros do Ziraldo trabalham muito com os projetos gráficos, as cores, as ilustrações em íntima conexão com o texto. Isso foi se acentuando de tal forma, que hoje você não pode, em um livro infantil, dissociar imagem e texto: verbal e não-verbal estão em íntima conexão. O projeto gráfico, desde o papel, a letra, a ilustração, as cores, o formato: tudo é muito pensado como um objeto de arte, de desejo mesmo. As crianças querem pegar aquele livro, porque é um objeto que tem beleza. Às vezes, isso é uma armadilha, porque pode ter muita beleza no seu projeto gráfico, mas o texto ser muito ruim. Além dessa questão do corpo do livro, o que chama atenção é a abrangência temática, no sentido de que todos os temas podem ser levados às crianças. Não há um tema tabu, um tema que não possa ser discutido com a criança, desde que respeite as condições intelectuais e emocionais desse leitor. Eu acho que isso também é uma inovação. Além disso, a própria fragmentação da linguagem que ocorre na literatura do adulto – com o pós-modernismo, com essa fragmentação do mundo, que vai gerar fragmentação do homem, que vai gerar fragmentação na arte – também chega à literatura infantil e à juvenil.

 

Quais autores citaria nesses últimos 30 anos?

Evidente que temos aqueles ícones, que são Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Marina Colasanti. Há um série de autores que continuam produzindo e produzindo bem, às vezes muito ligados ao mercado. Por isso, em alguns momentos a obra cai, mas isso é natural. E depois tem os novos, Caio Ritter, Luis Dil, Eloisa Prieto, Laura Bergalo, Jorge Miguel Marinho, João Proteti, Ricardo Silvestrini na poesia. Quero ressaltar que a poesia para crianças também cresceu bastante. Teve um boom na década de 1970, depois houve um abrandamento nessa produção, mas ultimamente a poesia está a todo vapor.


Como se dá a relação entre literatura para crianças e jovens e educação no Brasil? Quais foram as transformações?

A relação sempre foi muito forte. O próprio Olavo Bilac dizia que produzia livros para ensinar às crianças o bom comportamento. Então, a relação era direta entre escola e literatura, sempre foi. Essa relação é contínua, porque infelizmente a gente tem que concordar que as crianças têm acesso ao livro literário na escola. A grande maioria não tem acesso ao texto literário. Os governos têm se preocupado desde os anos 1980 com a compra de livros, com o provimento de obras literárias para as bibliotecas. Nós sabemos hoje que o governo é o grande comprador e o grande provedor da leitura no país, com os programas PNBE, Pnaic etc. Essa relação não pode ser esquecida, porque existe – e a gente considera que ela existe com o sentido altamente ideológico – no sentido de que a literatura estava ali para ensinar valores da sociedade aos alunos. Ao mesmo tempo, agora há uma tentativa de se levar a literatura como prazer. Que o texto seja o melhor, e que não esteja ligado a essas questões ideológicas, moralistas, de conhecimento, há toda uma preocupação com isso. Entretanto, acho muito complicado, porque nós temos um fator que é bastante negativo nessa relação literatura-escola, que é [o fato de] muitas vezes o professor não conhecer as obras literárias. Há uma grande produção, o governo compra grande quantidade de obras, mas os professores – que deveriam ser os mediadores entre as crianças e os livros que estão na biblioteca – não têm conhecimento desses livros, não abrem os livros. Eu acho que ainda se deve fazer um grande trabalho, não só de compra de livro, de prover a biblioteca com livros, mas também de preparar o professor para a leitura dessas obras, porque ele não lê. Esse é o grande problema. Mas eu não condeno a relação entre literatura e a escola, ela é fundamental, desde que seja bem conduzida - com obras de qualidade, e com mediadores que conheçam o seu ofício e que conheçam a obra literária.

 

Considerando as novas formas de ler, que projeções você faz  para o futuro da literatura infantil e juvenil  no Brasil?

Eu não diria que são as novas formas de ler. Você está me dizendo isso em relação aos novos suportes? Eu acredito muito no livro. Acho que se pode ler em todo lugar, o leitor que vai decidir quando ele vai ler ou não. Mas eu acredito também que as editoras, ao transformarem esses livros em objetos de desejo – em coisas que são verdadeiras obras de arte – cumprem com algo que outros suportes não podem dar. Você tem, por exemplo, livros com engenharia de papel, que as formas saltam das páginas. Você tem qualidade nas ilustrações, livros que você pode manipular, mexer no texto. As editoras estão empenhadas não em lutar contra esses  novos suportes, mas em mostrar que o livro pode permanecer. Não acredito no fim do livro, acredito que essa "briga" trouxe proveito para os leitores. Os leitores acabaram ganhando com isso, porque eles têm livros melhores, com suportes para textos muito melhores, e que são objetos de arte. Eles têm também outras possibilidades que, se você vai ler em outro suporte textual, você também tem outros elementos que encantam. Ele pode também trabalhar com o texto, encontrar outras formas de entrar no texto. Eu acho que essa briga é boa e fundamental para que o leitor possa cada vez mais encontrar razões para ler. Acho que não afasta: em qualquer suporte o leitor é leitor. O importante em tudo isso é formar mediadores de leitura, tanto no suporte tradicional, como o livro, como em outros suportes. É fundamental que tenhamos leitores tanto na familia, como na sociedade – com grupos de leitores – e principalmente na escola.