Entrevista: Peter Hunt


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 16:47:00

Por Vicente Cardoso Júnior[1]

It’s phenomenal to think that...” Peter Hunt se empolga quando afirma que contar histórias é a atividade primordial do ser humano. Minutos depois, é enfático ao criticar a prática de algumas editoras inglesas – “that’s a horrible thing...” – que publicam uma lista de perguntas na parte de trás de livros. Ao conceder essa entrevista ao Letra A, o professor emérito da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, manteve o tom bem-humorado, com um toque dramatizado, que conquistou a simpatia do público na abertura do XI Jogo do Livro e I Seminário Latino-Americano: Mediações de leitura literária e nas outras duas palestras que ele realizou na UFMG em novembro de 2015.

Ao falar de escolhas de livros para crianças, Hunt recorre às noções de autoconfiança e respeito. É a partir delas que seria possível relativizar a avaliação de um livro infantil: o que a visão da maioria diz ser ruim sempre pode ser bom para algo. Por exemplo, os contos de fada ‘cor-de-rosa’: esses livros voltados para garotas, muito populares na Inglaterra e também muito criticados, são, segundo Hunt, “ótimos para mostrar à sociedade como a mulher é vista atualmente” e ensinam sobre “a estrutura padrão de contos populares”. A dimensão cultural da literatura e a importância de se trabalhar ficção nas escolas também são temas abordados na entrevista. Entre uma resposta e outra, Hunt convoca até um famoso conterrâneo da ficção, o agente James Bond, para explicar como funciona a ideia de “leitor implícito”.

 

Em suas palestras, você falou sobre dar poder às crianças – e é fácil entender isso em relação a elas escolherem os livros que querem ler ou comprar. Mas quanto poder as crianças deveriam ou poderiam ter quando falamos da produção do livro literário?

No momento, acredito que o sistema está configurado para excluir as crianças. Mas as crianças têm influência sobre professores, pais e editores e, assim, qualquer editora de bons livros infantis fará contato ou terá na sua equipe professores, pais e profissionais da educação em geral. Editoras sempre recorrerão a esses grupos para saber o que eles acham que é uma boa ideia ser publicado. Esse grupo vai se basear nas crianças e, assim, se um grupo de crianças gostar de um livro em especial, isso será passado ao professor, que recomendará aos bibliotecários, que, em seguida, entrarão em contato com as editoras, e por aí vai. Há também casos em que editoras não acreditaram que certos livros se tornariam famosos entre as crianças, apesar do que os pais pudessem dizer. Harry Potter é um exemplo disso: foi impresso em pequena quantidade e se tornou famoso pelo “boca a boca”. Os editores receberam informação de livrarias sobre como ele estava sendo procurado – porque era exatamente isso o que as crianças estavam fazendo. Mas eu não penso que isso funcionaria dessa forma direta. Na maneira como o sistema está configurado, a ideia de reunir, em uma mesa no escritório da editora, duas crianças e dois adultos não funciona muito bem.

 

Qual seria então o poder possível, ou esperado, concedido às crianças nesse contexto?

Por exemplo, existem dois ou três prêmios de livros infantis na Inglaterra que são concedidos por votos de crianças. O problema, é claro, é que depende de quais livros as crianças já leram. Mas é bem possível que um livro que as editoras não acham que pode ser um grande sucesso seja votado pelas crianças e, então, o resultado é que o livro se tornará mais conhecido. Mas as crianças só têm a oportunidade de gostar do que é oferecido a elas. Assim, se perguntarmos do que elas gostam, elas se baseiam naquilo que já conhecem. Logo, elas dirão: “queremos mais fantasia, do tipo daquelas que nós gostamos”, certo? Em vez de dizer: “Eu quero algo totalmente diferente”. Eu acho que é o adulto quem deve inovar e, em seguida, possibilitar o acesso às crianças.

 

 

De que maneira filmes e outros produtos culturais influenciam as crianças em suas escolhas literárias?

É muito interessante quando olhamos para propagandas, filmes ou livros e o efeito que têm sobre as crianças. A maioria das pesquisas mostra que as crianças vão negar: “eu não sou influenciado por isso”, mas provavelmente são sim. Se você perguntar a outro grupo, como garotas adolescentes, sobre a influência de Jogos Vorazes e Crepúsculo, elas dirão: “nós sabemos a diferença entre fantasia e vida real”. Esses romances de mocinha e mocinho são extremamente populares e conhecidos. Em uma pesquisa conduzida por um colega sobre esse tema, houve entrevistas a muitas pessoas, e a reação sempre era: “sim, nós sabemos que aquilo não é real e que príncipe nenhum resgata a princesa, sabemos que nada é perfeito na vida real” e por aí vai, “o que não significa que não nos divertimos ao ler isso”. É fato para todos nós: lemos fantasia mesmo sabendo que não é real. A questão é a seguinte: crianças sabem a diferença entre fantasia e vida real, subconscientemente estão se alimentando disso.

É realmente um jogo. Com qualquer livro, você tem que pensar: “eu vou ser o leitor implícito, e, em seguida, ser o que ele quer que eu seja, e esquecer que James Bond seria morto quatorze vezes em um filme”. Esqueça isso!

 

Como pais, professores e outras pessoas podem relativizar seus critérios de avaliação sobre o que julgam ser um bom livro para crianças?

Isso é o mais difícil, justamente porque parece fácil. Mas tudo depende da autoconfiança que o pai ou o professor tem para poder dizer: “eu não vou concordar com a visão da maioria”. É possível demonstrar que [a qualidade de] clássicos e outros bons livros não se baseia em nenhuma evidência concreta, é puramente cultural. Lembro-me do momento em que descobri isso, quando eu tinha mais ou menos uns 30 anos de idade. Estava nos Estados Unidos e li um livro chamado The Theory of Literary Criticism: A Logical Analysis [A Teoria da Crítica Literária: Uma análise lógica], de John M. Ellis, e tudo o que ele disse, em centenas de páginas, foi: “não dá para dizer que um livro é bom só pelo texto; o texto não contém o que faz dele realmente bom”. E, claro, eu pensei: “O quê? Como assim?”. Bem, você mesmo pode fazer o teste, é uma boa experiência: você pode pegar uma parte de qualquer livro, pedir a alguém que leia e perguntar: “isso é bom ou não?", sem levar o contexto em conta. Fiz isso voluntariamente, extraí dois trechos de livros infantis realmente inferiores e dois de livros infantis clássicos. As pessoas não conseguiram notar diferença, não sabiam qual deveria ser o “bom”. Você não pode trapacear, mas precisa se certificar de que a parte do livro inferior que você escolheu foi bem trabalhada. É um teste interessante, se você disser às pessoas: “olha, podemos demonstrar que isso é um mito”. E se há algo sobre mitos com que todos concordamos é que eles são culturalmente estruturados. No entanto, você está lidando com crianças, não tem que fazer esse tipo de teste com elas. Então, respondendo à pergunta de modo mais direto: as pessoas devem ter mais autoconfiança, acreditar no que pensam, e decidir quando é importante ensinar sobre um conjunto de valores, sobre os contextos de produção das obras e sobre como isso afeta a quem as lê.

 


[1] A entrevista também contou com a participação das professoras da FaE/UFMG Cristina Gouvêa e Vanessa Neves e da estudante de Pedagogia Tacyane Guimarães. Transcrição do inglês por Natália Vieira e tradução de Katherine Oliva.


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Entrevista Peter Hunt (parte 2)