Entrevista: Peter Hunt (2)


     

Letra A • Quarta-feira, 20 de Abril de 2016, 17:11:00

Você mencionou uma grande linha de produção de livros na Inglaterra organizada por gêneros: contos de fada ‘cor-de-rosa’ para garotas; histórias de sangue, bravura e heróis para garotos. Quais são as qualidades desses livros?

Isso é muito interessante, porque as pessoas dizem que devemos preservar o clássico conto de fadas e o conto popular, como eram contados nos séculos 18 e 19, e que não se pode mudar esses gêneros. E o que os livros atuais estão fazendo é atualizar os contos antigos para alguma forma híbrida. Então, minha resposta é: “Por que não?” Os contos populares sempre recontam algo, são todos uma forma de releitura. Assim, os novos são apenas outra releitura, o que não significa que sejam piores ou melhores, e são ótimos livros para mostrar à sociedade, por exemplo, como a mulher é vista atualmente. Se você está perguntando se isso é bom ou não para as crianças, eu não sei dizer. Pode ser bom para um grupo de meninas e, se essas meninas compraram esses livros e estão gostando de ler, por que se preocupar? Talvez não seja de nosso agrado que as meninas estejam sendo educadas com essa visão, mas temos que equilibrar essa crítica com o fato de que elas estão aprendendo sobre a estrutura padrão de contos populares. Se perguntarmos a essas garotas: “por que você tem pôneis cor-de-rosa no seu quarto?”, elas não responderão: “bem, tenho um de verdade lá fora”, o que mostra que elas sabem a diferença e, assim, acho que esses livros são bons para uma necessidade atual e nada disso é desrespeitoso, tenho certeza.

Nos programas nacionais de distribuição de livros, como os que temos aqui no Brasil, há critérios de escolha que, muitas vezes, são contrários à seleção de publicações como esses novos contos populares. O que você pensa a respeito disso?

Acho que estamos conversando sobre dois sistemas diferentes: em um momento estamos selecionando livros para o sistema escolar, então precisamos usar nossos critérios para isso. Já, por outro lado, se esse conto de fadas vendeu milhões, isso não é problema nosso. Estamos cuidando de um certo tipo de livro. Minha ideia fundamental, depois de muitos anos lutando nesse campo, é dizer que precisamos de ter uma atitude de respeito e, ao olharmos para livros, devemos nos perguntar: “O que gostamos neles? E que relação existe entre o que gostamos e o que as crianças podem gostar?” Por exemplo, se compararmos a complexidade da narração de um romance contemporâneo com outro escrito há cinquenta anos atrás, é possível notar a diferença da prosa. O que você quase certamente vai notar é que a prosa moderna é menos complexa em termos linguísticos. Por outro lado, pode ser mais rica na referência a outros elementos culturais.

De um modo geral, [essa seleção] é uma tarefa muito difícil, e você tem que estar ciente da relação entre as suas respostas e as possíveis respostas das crianças. Não é uma questão de certo ou errado; é apenas diferente. Quando os meus escritores favoritos de 1900 estavam “pintando” uma cena, eles poderiam gastar meia página ou uma página inteira. Era normal, pois não havia outra maneira de descrever uma cena. Hoje as crianças vivem em um mundo visual e audiovisual, em que imagens estão presentes em toda parte. É muito diferente do que era antigamente. Hoje, o autor que decidir descrever uma cena em meia página estará encrencado. É aí que creio haver uma distância entre a criança e o adulto, e fazemos o melhor que podemos para tentar diminuí-la.

Na Inglaterra, como a literatura é incorporada ao conteúdo escolar e o que é considerado importante ao se ensinar literatura para crianças e adolescentes?

Acho que quase todos os professores têm uma ideia de que deve ser possível expor a criança ao mundo se ela for alfabetizada de uma maneira que leia ficção e outros livros. Isso se baseia na ideia de que livros de ficção são muito importantes na comunicação entre as pessoas. Psicólogos cognitivos descobriram recentemente que o cérebro humano tem na ficção sua melhor forma de funcionamento. Em um ótimo livro, The Storytelling Animal [O Animal Contador de Histórias], lançado no ano passado, Jonathan Gottschall aponta que os psicólogos descobriram que o ser humano gasta 70% de sua vida – talvez seja até mais – contando histórias para os outros e para si mesmo. Então, de todo o tempo em que você esteve aqui, quanto tempo você acha que realmente esteve aqui? Por quanto tempo você tem contado histórias sobre o que aconteceu, ou sobre o que irá acontecer, ou o que pode vir a acontecer? Aí, você vai para a cama e nos sonhos conta histórias a si mesmo durante toda a noite. É fantástico pensar que contar histórias é o que mais fazemos em nossas vidas! Sendo assim, fazer o uso de ficção na escola e fazer com que crianças se relacionem com ficção é algo excelente e esperado. Negar a elas a oportunidade de entenderem a forma como as coisas acontecem não é nada bom.

Em termos práticos, na Inglaterra, como em qualquer outro lugar, tudo depende do dinheiro disponível. Nós temos um governo de direita que, nos últimos dez a quinze anos, tentou padronizar o sistema escolar e ditar o que as crianças deveriam aprender: “esse é o currículo nacional e você tem que estudar isso”. No sistema público, eles colocam ficção em uma caixinha, já que precisam ter espaço para História, Geografia, Matemática e Inglês e... “Ah, sim, e tem aquela coisa de ficção”. E assim coisas como música são deixadas de lado. É triste... Na Inglaterra, infelizmente, narrativa e histórias podem ser consideradas algo para se ensinar da mesma forma que Matemática.

 

E eventualmente alguns autores e educadores até dizem que é bom que a criança leia certo livro, porque ele ensina ‘isso e aquilo’...

Aí é utilizar ficção como um texto funcional. Até hoje, na Inglaterra, existem várias edições que trazem na sua parte de trás uma lista de perguntas, o que é abominável.

Nos anos 1980 e 1990, as melhores escolas tinham ficção como parte de seu projeto. Livros estavam à disposição e as crianças podiam ler tudo o que quisessem. Se quisessem, por exemplo, ler um romance, os adultos podiam ler para elas. Não haveria questões de prova após a leitura, mas perguntas como: “e o que vai acontecer depois?”, o que é muito mais envolvente. E, assim, as crianças aprendiam nossos modelos de contar histórias, que são algo muito presente em nossas vidas, como os psicólogos mesmo dizem.

Então, em vez de fazer [da ficção] algo sagrado, ela deve ser algo integrativo, o que demanda mais tempo, mais dinheiro e um pouco do que seria dedicado a outras atividades.

 

Também é importante estimular as crianças a produzirem textos literários?

Bem, de acordo com pesquisas e resultados que já vi, é uma boa ideia, pois as crianças estão fazendo duas coisas ao mesmo tempo: aprendendo como a sociedade normalmente estrutura histórias e também estão se relacionando com suas próprias histórias. É engraçado que, se você pedir a uma criança para escrever uma narrativa, muitas vezes vai aparecer um monte de conjunções: “aconteceu isso, e aí… e aí… e aí… e aí...”. Isso é uma história básica, sem nenhuma causalidade, apenas “isso aconteceu, e aí aquilo aconteceu…”.

Na Inglaterra, os escritores de romances do século 18 escreviam longos fluxos de acontecimentos. Isso muda no século 19, quando a causalidade torna-se primordial. Assim, se alguém diz que “o rei morreu e em seguida a rainha morreu”, temos uma história; se alguém diz que “o rei morreu e em seguida a rainha morreu de tristeza”, temos um enredo. Há uma conexão motivacional, o que significa que um enredo complexo funciona de modo reflexivo, sempre volta a si. Acontece isso com os romances mais sofisticados, mas não é assim que começamos a contar histórias, porque elas vêm de nós mesmos, é uma sequência, tudo se relaciona a nós mesmos, como “eu andava na estrada e vi aquilo e em seguida aquilo, e depois aquilo outro... Então, quando me afastei um pouco, caminhei pela estrada e aquela coisa estava atrás de mim”. Nossa forma de ligar uma ação à outra para entender o mundo fica mais sofisticada à medida que ficamos mais velhos; já as crianças veem o mundo de forma simples, linear: “Isso acontece e depois isso acontece…” Enquanto o adulto sofisticado que aqui imaginamos estaria analisando essas coisas. “Por que isso acontece? Quais as implicações disso?”

A vantagem de as crianças criarem textos é que elas brincam com as palavras. Elas estão experimentando, fazendo à maneira delas, e se você disser: “isso é ótimo”, então elas podem dizer: “quem sabe eu não faço os verbos e os substantivos concordarem?” Portanto, lembre-se de que há duas coisas acontecendo: uma é brincar com palavras e a outra é aprender o sistema com o qual lidamos.