Escrevendo o espaço

Observar e representar lugares de vivência são os primeiros passos na formação de leitores de mapas


     

Letra A • Quarta-feira, 09 de Dezembro de 2015, 19:38:00

Por Poliana Moreira

Fazer um tour pelos arredores da escola, para conhecer um pouco mais a região, é uma ótima maneira de quebrar a rotina das aulas. Mas o passeio ainda pode ser aproveitado para um trabalho de mapeamento, que consistirá na observação e na posterior representação daquele trajeto. Assim, o professor vai além da tradicional aula de colorir estados, países ou continentes para introduzir as crianças no processo de alfabetização cartográfica, que envolve a escrita e a leitura de mapas.

Como os mapas têm linguagem própria, para Ínia Franco de Novaes, professora de Geografia nos anos iniciais na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA/UFU), um equívoco na introdução à cartografia é apresentá-la “de uma forma dura, fria, fazendo uso de uma cartografia euclidiana em que o aluno já tem que fazer a leitura do mapa com todos os seus elementos”. Para ela, o ponto de partida deve ser o de estimular o aluno a representar seus lugares de vivência. E, aos poucos, as reflexões e as produções vão crescendo em escala: “partindo do próprio corpo, para o lugar que a criança ocupa na sala de aula, a sala na escola, a escola na rua, a rua no bairro. E aí o aluno vai ampliando essas escalas: o bairro no município, o município no estado, o estado no país e, assim, do continente até o mundo”.

O corpo e suas vivências

Mapear o próprio corpo é a melhor maneira de iniciar a alfabetização cartográfica. Essa ação tem ligação direta com a percepção de mundo da criança nessa fase da vida, como explica Suely Aparecida Moreira, também professora da ESEBA/UFU. “É preciso desenvolver atividades simples, partindo do mapa do corpo no papel, já que esse é o espaço mais próximo da criança até os 7 ou 8 anos de idade, período em que ela tem uma relação egocêntrica com o espaço.” Ao desenhar o corpo no papel, a criança transforma esse espaço tridimensional (com altura, largura e comprimento) em bidimensional, o que a ajuda a compreender a ideia de representação espacial.

Num momento seguinte, é importante trabalhar com lugares de vivência do aluno e com sua percepção do espaço, como observa a doutoranda em Geografia na UFMG Maria Ivanice de Andrade, professora do Centro Pedagógico da UFMG. “Eu tenho que compreender esse espaço para só então poder representá-lo. E compreender o espaço é observar. É preciso observar as coisas à minha volta, me observar, me compreender e me perceber dentro desse espaço maior, para, em um segundo momento, começar a abstrair”. A professora lembra que até mesmo a escolha de um lugar no carro onde não bate sol já envolve conhecimento cartográfico. E uma boa forma de fazer a ligação entre essa relação com o espaço concreto e a abstração pela linguagem cartográfica é a construção de maquetes. “Esse trabalho ajuda o aluno mais novo, que ainda não tem uma abstração construída, a compreender que aquilo ali não é só um desenho; a maquete consegue dar um pouco mais de concretude para a criança menor”, ressalta Maria Ivanice.

Após a construção de uma maquete da sala de aula, por exemplo, Suely Aparecida Moreira afirma que é o momento de “desenvolver as práticas de mirada, ou seja, observar esse espaço representado de diferentes perspectivas”. Na perspectiva oblíqua, por exemplo, a criança vai enxergar o objeto pela quina ou diagonal; na perspectiva horizontal, vai ficar de frente para a maquete; enquanto na vertical terá uma visão similar à que se tem nos mapas convencionais: o olhar de cima. Também esse trabalho permite a introdução da noção de escala. “À medida que escolhemos objetos recicláveis para representar o objeto real, já começamos a considerar a relação de proporção e a refletir sobre qual é o tamanho do objeto real e em que proporção ele foi reduzido para ser representado”, argumenta Suely.

Produzindo mapas

Dados os primeiros passos no universo cartográfico, é hora de os alunos se tornarem ‘mapeadores’. Uma opção interessante desenvolvida por Maria Ivanice de Andrade foi o projeto “A cartografia do meu bairro”, com alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. Usando plantas com escala entre 1 e 5.000 até 1 por 15.000, os alunos percorriam a região onde moravam a pé, acompanhados por adultos. Nas plantas, que já traziam os nomes das ruas, o aluno devia identificar sua rua, marcar sua casa e construir o entorno com base em pontos de referência que eram importantes para ele, como a padaria ou a farmácia. “Esses pontos depois viravam a legenda; ele tinha que construir um símbolo que representasse cada ponto para começar a abstrair e consolidar essa noção de que o mapeamento parte de uma realidade.”

Na sequência, além de produzirem uma redação sobre o processo de construção dos mapas, os alunos participaram de uma roda de conversa sobre a experiência, na qual puderam contar onde era seu bairro e refletir sobre as condições de viver naquele lugar, pensando até mesmo “no que seria legal ter na frente da casa dele”, relata Maria Ivanice. Para a professora, a diversidade das produções foi outro ponto positivo, que refletiu o protagonismo dos estudantes no processo. “Nessas atividades, a gente percebe que nenhum mapa fica igual, a gente percebe que o aluno já traz um olhar peculiar, traz certas experiências que são dele”, conclui.