Eu, criança, no mundo
O desenvolvimento da percepção de si e do outro insere a criança no universo que a rodeia
Letra A • Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014, 15:13:00
Por Jeisy Monteiro
No Dia do Brinquedo, uma aluna levou para a aula uma boneca acompanhada por algo inusitado: uma certidão de nascimento em branco. A situação levou a professora Núbia Paiva, da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA/UFU), a iniciar um projeto sobre identidades com seus alunos de 4 e 5 anos. O primeiro passo foi preencher o documento, instigando os alunos a refletir sobre a importância das características que iam sendo listadas por eles. A partir desses atributos, a turma estabelecia relações com o novo mascote, que passou a fazer parte da rotina da sala de aula. “A primeira identificação veio da compreensão de que a boneca era um bebê que precisa ser cuidado”, relata a professora.
Priscila foi o nome escolhido pela turma, após um processo de resgate da história do nome dos próprios alunos, seguido por uma votação. Acompanhada dos pertences pessoais que lhe foram dados, Priscila passou um fim de semana na casa de cada criança que, quando retornava, relatava para todos os colegas como havia sido a experiência. “As crianças se colocaram em relação ao brinquedo, ao se perguntarem ‘quem sou eu na relação com esse bebê?’ Daí veio à tona a reflexão sobre o lugar que elas ocupam em suas próprias famílias”, explica Núbia sobre a atividade.
Reconhecer-se como parte de determinada esfera social, cultural, geográfica e étnica é fundamental para a criança entender quem é e como age no mundo. Quando entra na escola, a criança, que lidava com as identidades de filho e irmão no núcleo familiar, passa a construir também sua identidade como aluno e colega de classe, onde tem novas funções. Nesse contexto, a professora Roseli Iolanda da Cunha realizou uma atividade com seus alunos de 0 a 3 anos nos primeiros dias de aula no Núcleo de Desenvolvimento Infantil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com a participação das famílias, os alunos confeccionaram chocalhos com suas próprias fotos. Depois de prontos, os instrumentos foram disponibilizados na sala, de forma que todos pudessem manusear os objetos produzidos pelos colegas, podendo reconhecer as fotos dos colegas em separado, assim como todas em conjunto. “Com isso, foi possível trabalhar o que chamamos de identidade de grupo, que é a capacidade de se perceber como parte daquele grupo específico, e entender que a escola é constituída por vários desses grupos”, diz a pedagoga Dalânea Cristina Flor, da equipe de coordenação do Núcleo.
Um ponto fundamental na construção e afirmação da identidade é o nome que a criança reconhece como dela. “O nome próprio traz todo um conjunto de significações a partir da reflexão ‘meu nome é esse e eu tenho tais características’”, afirma Dalânea Flor sobre a atividade Vamos nos conhecer: qual é o seu nome?, também desenvolvida no Núcleo do Desenvolvimento Infantil da UFSC, na turma da professora Vânia Maria Broering. Eram pendurados pela sala saquinhos personalizados pelas famílias com o nome de cada uma das crianças presentes no dia. A atividade propunha identificar os colegas por meio do nome próprio, escrito no saquinho, e relacioná-lo com as características de cada um dos itens, observadas nas cores e nos desenhos pintados nos objetos. Para Dalânea, com essa atividade foi possível perceber que a significação dada ao nome próprio amadurece na proporção em que a identidade se constrói. “A criança começa a perceber que, mesmo que um colega tenha o mesmo nome, ela continua possuindo suas características particulares”, conclui.
O valor das diferenças
“São duas crianças lindas,/ Mas são muito diferentes!/ Uma é toda desdentada,/ A outra é cheia de dentes...”. O poema Pessoas São Diferentes, de Ruth Rocha, fez parte de outro trabalho sobre reconhecimento de identidade desenvolvido por Núbia Paiva. Nessa atividade, os alunos receberam o desafio de apontar no espelho suas características, como a cor dos cabelos e a roupa que vestiam. Depois disso, desenhavam algum colega de sala, observando o que era diferente e semelhante entre eles. “O processo de construção de identidade passa por reconhecer a si e reconhecer ao outro”, observa Núbia. “Ao olhar o outro e registrar em desenho, eu me percebo, percebo minha diferença em relação a ele, e passo a estabelecer uma relação de respeito e reconhecimento desse outro”, completa.
Nas brincadeiras, a criança está em constante contato com o outro e com o espaço, onde ela pode experimentar, pelo “faz de conta”, papéis e práticas sociais que observa no mundo. Segundo a psicóloga da ESEBA/UFU, Liliane Nunes de Araújo, nessas situações de brincadeira podem surgir conflitos que fazem parte da construção da identidade e da significação dos papéis sociais. “O conflito surge em falas como ‘você que é menina não pode ser o papai’”, exemplifica Liliane, que defende que o aluno possa encontrar soluções para o problema na própria interação. Nos casos em que elas não conseguem chegar a um consenso, ou em que começam a reproduzir estereótipos e preconceitos, o professor, observador da brincadeira, deve intervir, propondo a elas novas formas de construir as narrativas dentro da brincadeira. Nas palavras da psicóloga, “a escola tem que ajudar a criança a responder a essas dúvidas sem definir caminhos, mas apresentando as possibilidades que fazem parte da diversidade humana”.